Celebramos hoje a Solenidade da Imaculada Conceição da
Virgem Santa Maria. Apesar de ser um dogma com pouco mais de 150 anos, esta
crença de que Maria foi concebida sem pecado original é já atestada em anos
muito anteriores, nomeadamente em Portugal, onde o rei D. João IV mandou
colocar, nas portas de algumas vilas e cidades, uma inscrição a recordar esse
dado de fé. Enganamo-nos, porém, se olharmos esta solenidade apenas a partir
daquilo que Maria se distingue de nós e se afigura, por isso, inalcançável.
Pelo contrário, esta solenidade convida-nos a olhar para Maria como Mestra da
fé, como aquela que, enquanto criatura, mais se aproximou do sonho de Deus para
cada ser humano. Por isso a ela recorremos não só como intercessora mas também
como guia espiritual no caminho.
Hoje
as leituras apontam para Maria e convidam-nos a olhar para Aquela que além de
ser mãe de Jesus se tornou a Sua primeira e mais excelsa discípula. Se na
primeira leitura, retirada do livro de Génesis, o autor sagrado explica,
mediante esta narrativa etiológica, a transgressão original e a grande tentação
presente na humanidade de querer ser como Deus, o evangelho de Lucas responde,
através de Maria, a esta desordem entretanto desencadeada. À criação de Eva por
parte de Deus responde o mesmo Senhor com a nova criação que em Maria começa.
Mas
olhemos para o texto e para a forma como Maria se deixa interpelar e envolver
pelo projeto divino. É importante pensarmos em Nossa Senhora como alguém
preservada por Deus para ser Mãe do Seu Filho, mas também como alguém que teve
de exercer a sua liberdade para poder entrar no projeto divino. Maria não é uma
semi-deusa com uma autoconsciência inata da sua missão nos desígnios de Deus,
mas uma ‘mera’ criatura que vivia seriamente a sua fé e que por isso mesmo
estaria mais apta a acolher a chamada de Deus. Esta adesão ao projeto de Deus
manifesta-se perfeitamente neste diálogo que estabelece com o Anjo Gabriel.
Muitos de nós pensam erradamente que Maria também duvidou, também não aceitou à
primeira a proposta divina, ao perguntar: «Como será assim se eu não conheço
homem?». Esta não pode ser vista, apesar da tradução assim o permitir, como uma
interrogação de quem duvida, mas antes como a manifestação de uma disposição
para o facto. Ou seja, Maria pergunta ao Anjo o que pode fazer para que isso se
tornasse possível. E esta é a primeira condição para que possamos, como Maria,
ser pessoas de fé verdadeira: não colocar obstáculos ou dúvidas à ação da
Providência Divina, mas assumirmos a atitude de disponibilidade para entrar
nesse projeto, ainda que carregado de incertezas e indefinições. Maria sabe que
é a Deus que pertence o controlo da história e por isso também o da sua vida.
Esse dado é facilmente reconhecível pela sua expressão que se tornou célebre:
«Faça-se em mim segundo a Vossa palavra». Maria reproduz o «fiat» de Deus na criação e permite assim
que o mesmo Deus criador possa tornar-se o Redentor em Seu Filho Jesus, como o
Anjo havia descrito a Nossa Senhora. O sinal da verosimilhança deste
acontecimento em Maria é dado pela inesperada fecundidade de Isabel, que mais
tarde viria a reconhecer ‘in loco’.
Contudo, a síntese deste texto e de toda a vida de Maria resume-se nas palavras
finais do Anjo: «A Deus nada é impossível».
Em
Maria, Deus contempla aquilo que gostaria de ver em cada um de nós. Se à
partida se afigura difícil, a Palavra de Deus garante que não é impossível.
Esta celebração litúrgica desafia-nos, por isso, a sermos discípulos ao jeito
de Maria, a começar por esta disponibilidade para que se faça em nós segundo a
vontade do Senhor. Deus não impõe, como não o fez a Maria. Mas se em Maria quis
que o o Verbo de Deus se formasse e nascesse para ser Redentor, hoje o Senhor
convida-nos a gerar a Jesus no nosso coração e na nossa vida para que O
possamos anunciar, testemunhar e transmitir para salvação de tantos e tantas. A
receita é a de Maria: deixar que Cristo se forme em nós, e assim tornar
possível o difícil, seja na procura da santidade seja no serviço de evangelização
que prestamos.