Uma das premissas mais constantes nos Evangelhos, de forma particular em
Marcos, é a identidade de Jesus. Não raras vezes, após algumas das suas acções
junto do povo (milagres, exorcismos ou simples doutrinação), surge a questão:
«Quem é este Homem?» ou, como sucede neste excerto, «Que vem a ser isto?». De
facto, por detrás de uma adesão à fé está uma pergunta, que se transforma em
pro-vocação que suscita uma procura. Foram estas perguntas que foram
consolidando os dados de fé da Igreja primitiva em relação a Jesus Cristo e
ajudando a reconhecer a Sua acção operante na vida da comunidade enquanto
Ressuscitado.
Estamos
ainda no início do ministério público de Jesus, mas após a revelação da
identidade jesuana no primeiro versículo do Evangelho por parte do seu autor,
surge agora mais uma profissão de fé. No entanto, esta é feita no meio de uma
certa ambiguidade, já que é efectuada por parte de um «homem com um espírito
impuro». Ou seja: o reconhecimento de quem é Jesus parte de alguém que não se
move nos círculos próximos de Cristo, mas de alguém que se apresenta como Seu
opositor, provavelmente à margem da comunidade. Mas isso não nos deve espantar:
nem sempre são os que ‘estão dentro’ que captam mais facilmente a essência do
mistério de Deus. Todavia, esta figura ‘endemoninhada’, sem nome e sem rosto, representa
muito bem a bipolaridade constante a que a natureza humana está submetida: um
combate entre, como diz S. Paulo, o «bem que quero e o mal que não quero». O
ser humano sente-se muitas vezes dividido interiormente, seduzido por inúmeras
atracções que podem desviar a atenção do essencial e alienar a vontade em
superficialidades vazias e inócuas. Por isso, é natural que diante de uma
doutrina tão vibrante e vivificante como a de Jesus alguns se sintam
perturbados e incomodados, e muitas vezes dilacerados internamente por não ter
a coragem de aderir firmemente a essa «doutrina» (ou melhor, a essa Pessoa, que
é Jesus). A pergunta daquele homem com espírito impuro é a questão que tantos
hoje colocam quando são confrontados com a ética das suas decisões, acções ou
critérios: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?». Cristo corre o risco
de ser encarado como Alguém que importuna a liberdade, que condiciona as
decisões, que radicaliza um estilo de vida, que exige coisas impossíveis, que
frustra planos pessoais ou que impõe sacrifícios desumanos. Porém, a convicção
a que somos chamados a ter é outra: é a certeza da origem divina da Sua
autoridade. Tal como o livro do Deuteronómio já pré-anunciava profeticamente, a
adesão a Jesus efectiva-se pela credibilidade do Seu testemunho, pela perfeita
sintonia entre o que diz e faz, e pela eficácia da Sua acção, ontem como hoje. Ele
é, por isso, não só Aquele que devemos escutar mas também o único capaz de
exorcizar e calar as vozes que, dentro de cada um, parecem afastar dos caminhos
de Deus.
Sem comentários:
Enviar um comentário