(Purificação do Templo, El Greco)
O Evangelho segundo S. João tem uma estrutura muito
particular, não só do ponto de vista teológico mas igualmente na apresentação
de uma certa ‘histografia’ de Jesus. Desde o início do ministério público de
Jesus até ao Seu mistério pascal, o quarto evangelista narra a presença de
Jesus em Jerusalém por três vezes no contexto de celebração da Páscoa. O
episódio da purificação do Templo insere-se nessa primeira ida a Jerusalém, mas
assume uma configuração diferente da narrativa dos sinópticos: enquanto que
nestes o gesto profético de Jesus precipitou o Seu processo de condenação e
morte, no evangelho de João está ao serviço de uma teologia dos sinais que
caracterizam os primeiros 12 capítulos deste livro. Deste modo Jesus mete em
marcha uma ampla reconfiguração da fé do povo judaico e propõe uma renovada
interpretação da Lei de Moisés (Decálogo), código da aliança entre Deus e o
Povo que a primeira leitura expõe. E projecta para o Seu mistério pascal a
chave hermenêutica de toda a Sua vida e pessoa, onde se revela o verdadeiro
milagre que os judeus pedem e onde se manifesta a sabedoria que os gregos
procuram.
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Aquilo que incomodou os judeus daquele tempo é a
mesma realidade que hoje continua a importunar os membros da Igreja, novo Povo
de Deus. A palavra de Jesus é incómoda e desafiante, muitas vezes escandalosa e
provocadora. Ontem como hoje, na busca de uma vivência mais plena da religião,
Jesus deseja purificar a essência do verdadeiro culto, das nossas liturgias e
práticas de fé. Ontem como hoje, Jesus desafia a regressar à centralidade de
Deus e da pessoa, em detrimento de uma ‘lei’ desencarnada e desprovida do seu
verdadeiro espírito.
Efectivamente, «Ele bem sabia
o que há no homem». Os escritos veterotestamentários já nos testemunham este
olhar profundo de Deus que não se fica pelas aparências, mas olha o coração;
Jesus apenas se limita a evidenciar este olhar do Pai que não pode pactuar com a
hipocrisia de quem diz acreditar sem verdadeiramente se converter. Aliás, o
Decálogo, que hoje nos é dado na primeira leitura a partir da tradição do
Êxodo, não é um mero manual de bons costumes ou conduta ética, para ser seguido
fiel e cegamente como caminho único e exclusivo de salvação. Os «10
mandamentos», como vulgarmente os conhecemos, são antes de mais um dom de Deus,
uma resposta divina à fragilidade do ser humano, uma acção gratuita da
misericórdia de um Deus que vê o Seu povo vacilar e que por isso oferece como
dom e sob a categoria de ‘lei divina’ as palavras que permitem viver mais
plenamente a vocação humana e a aliança com Deus.
Porém, esta obediência à lei deve ser
vivida em liberdade, na procura de uma sintonia perfeita entre dois corações: o
humano e o divino. No fundo, mais do que vencido, é preciso estar-se convencido
da proposta do Senhor, e aderir não só aparente mas realmente. É isso mesmo que
Jesus procura evidenciar através do gesto da purificação. Geralmente, o
evangelho de S. João deve ser lido como um díptico: a realidade física e a
realidade teológico-espiritual, em que esta interpreta aquela. Só assim assume
a categoria de sinal que remete para uma dimensão superior ao acto físico
enquanto tal. Purificar o Templo significa erradicar o que é nefasto da
realidade religiosa mais sagrada do tempo, abalando as estruturas judaicas e a
forma como concebiam o culto e exploravam o povo; mas para os destinatários do
evangelho, que já assumiram a ressurreição como realidade e presenciaram historicamente
a destruição do Templo anunciada por Jesus (ano 70 d.C.), significa igualmente
purificar e sacralizar o novo Templo, que é o Corpo de Cristo, a Igreja,
nascida do lado aberto de Jesus na Cruz. Deste modo, para os cristãos de hoje,
o gesto profético de Jesus deve ecoar aos ouvidos com veemência e como desafio:
desafio a uma Igreja não impecável mas arejada, centralizada na gratuidade do
louvor de Deus, numa liturgia coerente com a vida, que abre as portas a quem
nela quer entrar. No fundo, como tanto tem advertido o Papa Francisco, é
necessário que os agentes pastorais não se refugiem nas regras e normas que
obstaculizam o olhar da misericórdia sobre a pessoa humana, agindo tantas vezes
como controladores da graça e não como facilitadores. É que «a Igreja não é uma
alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante»
(EG 47).
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