domingo, 3 de junho de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do IX Domingo do Tempo Comum (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)



O sábado era (e é) uma das instituições mais sagradas do Povo de Israel. Referido em relação à criação no primeiro decálogo (livro do Êxodo), como memória do dia em que Deus repousou da Sua obra criadora, que só ali estaria concluída, no livro do Deuteronómio é visto numa perspetiva teológica diversa: a memória da libertação do povo face aos egípcios, pelo que o descanso sabátio procura fazer memória da superação da escravidão vivida durante séculos. O problema não é a questão da santificação do sábado como realidade sagrada e preceito divino, mas a sua absolutização alienadora e muitas vezes desumanizadora. Jesus repudia a vivência meramente exterior e rotineira do sábado, e por isso entra em acesa polémica com os fariseus. No fundo, Jesus pretende veicular apenas uma ideia básica: nenhuma lei, seja ela qual for, está acima do ser humano e muito menos acima do próprio Deus. O cristianismo é a religião da interioridade (e humanidade) e não da aparência, pois só na verdade genuína e transparente é que se pode conhecer o esplendor da glória de Deus, «que se reflete no rosto de Cristo».
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A questão do sábado é uma questão paradoxal, não só nos evangelhos mas em grande parte da Bíblia. O sábado nasce de duas grandes necessidades: amar a Deus e o próximo. Isso mesmo está consubstanciado no mandamento do Deuteronómio: «Guarda o dia de sábado, para o santificares». Mas o desenvolvimento deste preceito acrescenta um dado importante: o repouso é extensivo a filhos, escravos, estrangeiros e até animais. Ou seja, o sábado nasce como uma escola de humanidade e como uma realidade sagrada que privilegia a igual dignidade de todos diante de Deus. O grande problema que se seguiu foram os excessos aplicativos e interpretativos desta lei, que se foi tornando uma instituição pesada, alienante e desumanizadora, de tal forma que em prol de uma suposta sacralização do dia e d’Aquele que o institui se esvaziou o sentido da humanidade e fraternidade que ele próprio preconiza. O sábado deixou, com o tempo, de ser um tempo de graça, que visa oferecer ao ser humano um período gratuito e merecido de repouso (shabat significa descansar), e passou a constituir um rol de proibições e imposições que quase obscureceu a celebração memorial da Páscoa e esvaziou a sacralidade do dia.

A polémica com Jesus surge, assim, de forma natural. Cristo não pactua com injustiças sociais, e olha para a humanidade como algo que é mais importante que o próprio sábado, pois só o ser humano é «criado à imagem e semelhança de Deus». A expressão dos fariseus («Vê como eles fazem ao sábado o que não é permitido») é o olhar condenatório que ainda hoje muitos mantêm em relação a tantos irmãos na fé. Os olhos, a língua e os dedos parecem sempre prontos para atacar quem, aparentemente, quebra protocolos e não segue os padrões esperados. Mas, como diz Jesus, «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado». Jesus censura a atitude daqueles que se colocam numa posição de superioridade diante dos outros, assumindo-se como juízes e árbitros da vida alheia. No fundo, os dias santos (sábado para os judeus, domingo para os cristãos) são importantes na medida em que nos ‘obrigam’ a recordar as maravilhas que Deus fez e faz na história de cada um e na história de um povo, além de nos convidar a saborear o que a vida tem de bom e que mais dificilmente se obtém durante os outros dias da semana: o convívio, o descanso, o lazer, a família, as manifestações visíveis de caridade e dignidade humana. Deus repudia os atos ocos e rotineiros de piedade, que se realizam por mero preceito, movidos pela aparência e não pela convicção de coração. Liturgias solenes e comunhões em massa são inócuas quando não se traduzem existencialmente na alegria fraterna e na comunhão de vida com os demais. A santificação do dia sagrado começa com a santificação do ser humano, no reconhecimento da sua dignidade e no acolhimento das suas vidas, únicas e irrepetíveis. Por isso, é função da Igreja ajudar a que cada crente se liberte cada vez mais de tudo aquilo que aprisiona e asfixia o acolhimento normal dos dons de Deus, desenvolvendo um olhar e gestos concretos de misericórdia e caridade pastoral que levem os seus filhos a sentirem-se amados e protegidos no seu seio, e a fazer experiência concreta de que Jesus é não só Senhor do sábado mas também dos seus corações. 

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