O sábado era (e é) uma das instituições mais sagradas do Povo de Israel.
Referido em relação à criação no primeiro decálogo (livro do Êxodo), como
memória do dia em que Deus repousou da Sua obra criadora, que só ali estaria
concluída, no livro do Deuteronómio é visto numa perspetiva teológica diversa:
a memória da libertação do povo face aos egípcios, pelo que o descanso sabátio procura
fazer memória da superação da escravidão vivida durante séculos. O problema não
é a questão da santificação do sábado como realidade sagrada e preceito divino,
mas a sua absolutização alienadora e muitas vezes desumanizadora. Jesus repudia
a vivência meramente exterior e rotineira do sábado, e por isso entra em acesa
polémica com os fariseus. No fundo, Jesus pretende veicular apenas uma ideia
básica: nenhuma lei, seja ela qual for, está acima do ser humano e muito menos
acima do próprio Deus. O cristianismo é a religião da interioridade (e
humanidade) e não da aparência, pois só na verdade genuína e transparente é que
se pode conhecer o esplendor da glória de Deus, «que se reflete no rosto de
Cristo».
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A questão do sábado é uma questão paradoxal, não só nos evangelhos mas em
grande parte da Bíblia. O sábado nasce de duas grandes necessidades: amar a
Deus e o próximo. Isso mesmo está consubstanciado no mandamento do
Deuteronómio: «Guarda o dia de sábado, para o santificares». Mas o
desenvolvimento deste preceito acrescenta um dado importante: o repouso é
extensivo a filhos, escravos, estrangeiros e até animais. Ou seja, o sábado
nasce como uma escola de humanidade e como uma realidade sagrada que privilegia
a igual dignidade de todos diante de Deus. O grande problema que se seguiu
foram os excessos aplicativos e interpretativos desta lei, que se foi tornando
uma instituição pesada, alienante e desumanizadora, de tal forma que em prol de
uma suposta sacralização do dia e d’Aquele que o institui se esvaziou o sentido
da humanidade e fraternidade que ele próprio preconiza. O sábado deixou, com o
tempo, de ser um tempo de graça, que visa oferecer ao ser humano um período
gratuito e merecido de repouso (shabat significa
descansar), e passou a constituir um rol de proibições e imposições que quase
obscureceu a celebração memorial da Páscoa e esvaziou a sacralidade do dia.
A
polémica com Jesus surge, assim, de forma natural. Cristo não pactua com
injustiças sociais, e olha para a humanidade como algo que é mais importante
que o próprio sábado, pois só o ser humano é «criado à imagem e semelhança de
Deus». A expressão dos fariseus («Vê como eles fazem ao sábado o que não é
permitido») é o olhar condenatório que ainda hoje muitos mantêm em relação a
tantos irmãos na fé. Os olhos, a língua e os dedos parecem sempre prontos para
atacar quem, aparentemente, quebra protocolos e não segue os padrões esperados.
Mas, como diz Jesus, «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o
sábado». Jesus censura a atitude daqueles que se colocam numa posição de
superioridade diante dos outros, assumindo-se como juízes e árbitros da vida
alheia. No fundo, os dias santos (sábado para os judeus, domingo para os
cristãos) são importantes na medida em que nos ‘obrigam’ a recordar as
maravilhas que Deus fez e faz na história de cada um e na história de um povo,
além de nos convidar a saborear o que a vida tem de bom e que mais dificilmente
se obtém durante os outros dias da semana: o convívio, o descanso, o lazer, a
família, as manifestações visíveis de caridade e dignidade humana. Deus repudia
os atos ocos e rotineiros de piedade, que se realizam por mero preceito,
movidos pela aparência e não pela convicção de coração. Liturgias solenes e
comunhões em massa são inócuas quando não se traduzem existencialmente na
alegria fraterna e na comunhão de vida com os demais. A santificação do dia
sagrado começa com a santificação do ser humano, no reconhecimento da sua
dignidade e no acolhimento das suas vidas, únicas e irrepetíveis. Por isso, é
função da Igreja ajudar a que cada crente se liberte cada vez mais de tudo
aquilo que aprisiona e asfixia o acolhimento normal dos dons de Deus,
desenvolvendo um olhar e gestos concretos de misericórdia e caridade pastoral
que levem os seus filhos a sentirem-se amados e protegidos no seu seio, e a
fazer experiência concreta de que Jesus é não só Senhor do sábado mas também
dos seus corações.
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