«Armem confusão”:
foi este o pedido do Papa Francisco aos jovens para as JMJ Lisboa 2023. Não
sabemos se com realismo ou ironia, mas jovens sem confusão não seria, com
certeza, uma jornada da juventude. Talvez por isso, as notícias pré-jornadas
fossem cultivando um sentimento de pânico generalizado, como se os jovens que
nos visitam fossem hooligans violentos e destruidores de esplanadas, ou até
fanáticos terroristas que se infiltrariam para tentar um ataque em larga
escala. O que é certo que as multidões esperadas provocaram o êxodo de muitos
lisboetas (por certo, não católicos...), que deixaram vazios os parques de
estacionamento geralmente sobrelotados no centro da cidade.
Foi sem grande
expectativa que aguardei as JMJ. Procurei transformar-me num desconhecido
completamente aberto à surpresa, ao imprevisto, até ao imerecido. Os dias foram
passando e, sem quase dar por isso, eis-nos na semana há tanto anunciada: ela
chegou a toda a pressa.
Dia 0: tudo a
postos. Começam a chegar contingentes de peregrinos, um pouco desnorteados e
sem saber para onde ir, mas com um sorriso na cara. Começam a dançar, pular,
cantar... não se importam de esperar, nem questionam para onde vão e como vão
ficar. Isso é irrelevante. Por detrás de uma aparente timidez, solta-se uma
cristã rebeldia que começa a desacomodar e a criar o ambiente JMJ. Para um “laico”,
poderia parecer mais um festival da juventude, como o “Nos Alive” ou o “Rock in
Rio”. Talvez um pouco mais pacífico. Gradualmente, vamos vendo que os peregrinos
fizeram bem o trabalho de casa: já vão balbuciando algumas palavras em português:
«obrigado», «bom dia», ou um mais profundo: «louvado seja Jesus Cristo».
Destaca-se uma grande legião de camisolas amarelas. Como se viria a revelar ao longo da semana, eles, os voluntários, foram a pedra angular do evento. Disponibilidade, serviço, sorrisos, abraços e muita, muita paciência: fazendo jus à cor da t-shirt, foram verdadeiras camisolas amarelas desta grande corrida: crianças, jovens e menos jovens, de forma mais visível ou mais discreta, estavam por todo o lado. Neles encaixa bem o lema: «quem não vive para servir, não serve para viver».
Estava derrubado o primeiro preconceito: afinal a Igreja é alegre e, pasme-se, jovem. Mas ainda não era nada...
Dia 1: o grande início
das JMJ. Na paróquia da Nossa Senhora de Fátima eram colocadas as Relíquias do
Beato Pier Giorgio Frassati e de S. João Paulo II. Desde logo se começa a
sentir a atração por estes elementos, tanto simbólicos como reais, no apelo
comum à santidade. O painel exterior dava o mote: «Constrói a civilização do
amor». O barulho aumentava de tom pelo número cada vez maior de grupos:
coreanos, croatas, alemães, taiwaneses... Marca comum: a alegria e boa disposição.
Aqui não há rivalidades nem violência, mas um único propósito comum: o encontro
com Cristo, em Igreja. As filas para a veneração das relíquias já chegam quase
a uma hora de espera. A alegria exterior começa a transformar-se numa alegria
silenciosa e contemplativa junto do Senhor que ali se faz presente. De facto,
como cantaria mais tarde Carminho, Ele é a estrela, nós somos peregrinos.
E eis que chega o
momento da abertura oficial das JMJ, com a missa presidida pelo Cardeal-Patriarca
de Lisboa, D. Manuel Clemente. O Parque Eduardo VII transforma-se numa grande Colina
do Encontro. Aquele cenário levou-me até à israelita Tabgha, onde Jesus ordenou aos
Seus ouvintes que se sentassem na erva para O escutar e, posteriormente, para
lhes dar o pão da vida. De facto, foi um momento de graça, não só com a
multiplicação eucarística do pão, mas com a partilha generosa dos dons: cada um
com o que tinha, à sua maneira, na sua língua. A diversidade das cores que
compunham o quadro rompiam a monotonia com que, por vezes, o Marquês se veste,
seja de vermelho (mais vezes) seja de verde (menos vezes). Nunca o Marquês de
Pombal, um fervoroso perseguidor da Igreja e, sobretudo dos jesuítas, pensou “presenciar”
esta invasão católica, mesmo permanecendo de costas para o altar. No centro de
tudo, um Cardeal visivelmente sorridente e feliz; na colina, uma assembleia
grata a um homem que tanto (injustamente) sofreu para chegar a este dia. Comovedor
e merecido o momento dos aplausos. Na Igreja não se deixa ninguém cair. Com Maria,
chegámos apressadamente e agora somos chamados a partir apressadamente para uma
jornada inesquecível. Estava dado o mote.
Dia 2: a chegada do Papa, assinalada com o toque efusivo dos sinos. O Papa quis vir ter com os seus jovens, dando um grande sinal de humildade, ao não se deixar vencer pela doença e dificuldade. Quando mais tarde disse que não somos um número para Deus, mas um rosto, uma cara e um coração, sem maquilhagem, o Santo Padre é o primeiro a dar o exemplo: não recusa apresentar-se diante de nós com as marcas da “sua” paixão, apoiado em muletas e ajudado por uma cadeira de rodas. O seu programa é extenso, mas o seu olhar é único. No seu discurso no CCB, manifesta um surpreendente (?) conhecimento da literatura portuguesa. Apenas curiosidade intelectual? Creio que não. Francisco convida os portugueses a não esquecer as suas raízes cristãs, que fizeram de Portugal, no passado, uma nação tão importante na evangelização. E por isso não perde a oportunidade de lançar uma alfinetada a alguns dos presentes, censurando a eutanásia, “uma realidade mais amarga que as águas do mar”. Mas Lisboa é, nestes dias, a cidade da esperança. E estas JMJ devem constituir o lugar onde se começam a esboçar os três estaleiros de construção da esperança: o ambiente, o futuro, a fraternidade.
Pelas paróquias, as manhãs são passadas a redescobrir o sentido da fé: «Rise up», “levanta-te”. As igrejas e outros espaços enchem-se de jovens que rezam, cantam, louvam, aprendem e celebram. É contagiante esta alegria, esta invasão de “estrangeiros” que provocam os ocidentais mais tendentes ao subjetivismo (e interioridade) da fé. A igreja, neste caso a de Fátima, torna-se um lugar de festa em tom coreano: mais de mil, entre os quais 10 bispos e mais de 100 padres. Não percebemos o que dizem, mas partilhamos claramente a mesma linguagem: a linguagem do amor cristão. Os bispos não se envergonham de dançar ao ritmo da assembleia, sem se importar que as mitras caiam das suas cabeças: batem palmas, sorriem para o lado, unem-se à voz das suas ovelhas. Já não escondiam a alegria de vir a receber as próximas JMJ. Ali estavam como que num tubo de ensaio, a mostrar aos europeus o que significa uma Igreja viva, em crescimento e em maturação. Igreja caduca e moribunda? Quem os vê, sente exatamente o contrário. Oxalá aprendamos com eles alguma coisa...
Dia 3: o acolhimento
ao Papa Francisco. O festival da juventude continua por todo o lado. Cada vez são
mais os peregrinos que chegam. Mas faltava estar com o peregrino nº1. O encontro
com os universitários na UCP daria o mote para este primeiro encontro: «não
sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos». O Papa pede um
regresso ao essencial, sem dicotomias vazias e inócuas, que fazem do
cristianismo uma ideologia e um combate entre “ismos” que desvirtuam o sentido
unitário da Igreja. Os jovens são chamados a ser “coreógrafos” da dança da
vida, mais do que (pensamento meu) visitadores de museu. E dança não faltou na
cerimónia de acolhimento. Foi comovente ver entrar o Santo Padre ao som do “Foi
Deus”, magnificamente interpretado pela fadista Mariza. A identidade portuguesa
foi o cenário desta manifestação da catolicidade da Igreja, que as bandeiras nacionais
visivelmente representavam. Todos... todos, todos, todos... até o Alentejo com
o seu “cante” derrubou o estigma de ser os portugueses menos católicos.
Coreografias à parte, assistiu-se a uma verdadeira manifestação pentecostal. O
Santo Padre concretiza, de forma bem vincada, eloquente e entusiástica, o que
todos sabemos: «na Igreja há espaço para todos». E pede que se repita: «Todos,
todos, todos». Aquele santuário de portas abertas mostra que a Igreja é uma mãe
que abraça todos os filhos. Que aceita e integra todos, mas não aceita tudo,
como mais tarde frisaria no avião a caminho de Roma. A Igreja é de todos, mesmo
que nem todos se sintam Igreja. Mas esta multidão mostrou que ama a Igreja, que
está na Igreja e com a Igreja. O Papa quis dizer que “NÓS” somos a Igreja, e não
só os bispos, padres e os seus círculos mais próximos. Todos, todos... porque
na cruz todos fomos abraçados no amor de Jesus e por Ele salvos. Sim, a Igreja é
de todos, é para todos, depende de todos, mesmo que os caminhos nela trilhados
sejam diferentes de pessoas para pessoa.
Dia 4: é o dia da misericórdia.
O Papa confessa 3 jovens. Cumpre, assim, o que havia revelado antes: a Igreja é
para todos. Ali TODOS são acolhidos, escutados e regenerados como filhos. Impressionante
a “onda” de bênçãos que Deus derramou durante esta semana no sacramento da
reconciliação. Só na Cidade da Alegria foram cerca de 15 mil. Mas muitos mais
por essa cidade fora, nos sítios menos prováveis e mais recônditos, porque a
misericórdia não tem lugar específico, é quando e onde Deus o entender e o
momento propiciar. As relíquias na Igreja de Fátima têm cada vez mais
peregrinos, as conferências enchem-se de gente sedenta de uma “Boa Notícia”:
Deus ama-nos como somos, como seres únicos, dotados de uma originalidade própria
e criados por e para o amor. Por isso mesmo, nós valemos o sangue que Cristo
derramou por nós. A Via Sacra quis mostrar-nos que TODOS temos lugar na cruz de
Jesus: é por nós que Ele se entrega. O testemunho de uma abortista, um jovem vítima
de depressão e um ex-toxicodependente reforçam o grito do dia anterior: TODOS têm
lugar na Igreja. A via-sacra foi um momento redentor: redentor pelas lágrimas,
onde Jesus Se faz presente; redentor pela extraordinária beleza da coreografia,
tornando um acontecimento do passado num evento do presente: o caminho de Jesus
é também o nosso caminho. «Jesus caminha para a cruz, morre na cruz, para que a
nossa alma possa sorrir».
Dia 5: enquanto o Papa se faz peregrino de Fátima, indo e vindo apressadamente, os peregrinos iniciam a sua marcha para o Campo da Graça. As primeiras estatísticas fazem estremecer os mais céticos: 1,5 milhões de pessoas. O calor faz temer os mais otimistas. A manifestação de fé que ali se vive faz abalar os mais “laicos”. Afinal, a Igreja ainda está viva, e bem viva. As imagens falam por si: os custos passam para segundo plano, e a Igreja dá um sinal de pobreza quando aqueles que representam o seu futuro, os jovens, se instalam nas condições possíveis (e impossíveis): com aperto, com calor, sem teto, sem ar condicionado. À medida que anoitece, o céu vai deixando mensagens em várias línguas: levanta-te, segue-me. O Papa chega, e com ele uma mensagem que fica para a vida: «o único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo é quando queremos ajudá-la a levantar-se». É esta alegria missionária que os jovens são convidados a transportar consigo, como Maria o fez quando visitou Isabel. Pelo meio, um aviso: «na vida nada é de graça: só o amor de Jesus». Provocação pelas discussões pré-JMJ? Talvez. Mas aquilo que ali se vive é graça e é de graça: uma multidão que canta a sua fé, mas que faz silêncio quando surge no meio o próprio Amor em pessoa: Jesus. De facto, Ele é a estrela, nós somos peregrinos, como cantava Carminho. O mundo fica suspenso para que a Estrela resplandeça sob o altar: 3km de pessoas em profunda reverência. Como frisou Mariza, a maior manifestação de amor alguma vez vista em Portugal. É ali, no coração de Jesus, que TODOS temos lugar.
Dia 6: a alvorada com o padre DJ, Guilherme. Sinal de uma Igreja arejada e aberta, longe dos rótulos com que muitos a querem pintar. O Papa convida-nos a resplandecer, a escutar e a não ter medo. Anúncio feliz do Jubileu 2025 e das JMJ 2027 na Coreia do Sul. A despedida soava já a uma doce nostalgia, que a “saudade” não consegue apagar. O mais jovem de todos os peregrinos, com 87 anos, parecia rejuvenescido com esta onda jovial. Onda essa que o Papa evocou na sua última aparição em solo português: convidou-nos a sermos surfistas do amor. Jesus, que foi o primeiro surfista conhecido, já havia dito a Pedro, primeiro Papa, para não ter medo de surfar e confiar na Sua Palavra. Esta é a grande mensagem que continua a ressoar: «Não tenhais medo» de surfar, por maiores que sejam as ondas.
Dia 7:
a ressaca, a nostalgia, o vazio das multidões, mas a plenitude de um coração
cheio, que precisa agora de assimilar e discernir o que de tão bom viveu nestes
dias. A JMJ começa agora. Há um grande mar por navegar e muitas ondas por
surfar. Jesus é o timoneiro, e a “Geração 2023” dará corpo a esta rejuvenescida
barca que será sempre de Pedro.
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