A primeira leitura de hoje apresenta-nos um dos
conhecidos «Cânticos do Servo de Deus», figura enigmática de claro perfil
messiânico que o Deutero-Isaías apresenta como alguém inocente que dá a vida
pelo seu povo e com isso «justificará a muitos». A vida de Jesus vai
posteriormente ser interpretada à luz destes cânticos, e a Sua paixão e morte
vão ser entendidas como o gesto supremo daquele «Sumo Sacerdote que penetrou os
Céus» e como «um sacrifício de expiação». A vida cristã deve ser uma imitação
do Mestre, inclusivamente na disponibilidade ao martírio. Porém, deve imperar a
lógica do serviço e da gratuidade, e não a presunção de um «lugar» comprado e
imposto, como fizeram os filhos de Zebedeu.
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A passagem evangélica que nos oferece hoje a liturgia começa de uma forma
algo caricata. Os filhos de Zebedeu, Tiago e João, parecendo não ter
compreendido os ensinamentos anteriores de Jesus, aproximam-se d’Ele e pedem,
quase em forma de imperativo, uma coisa estranha: «Mestre, nós queremos que nos
faças o que Te vamos pedir». É um pedido estranho porque inverte a lógica do
esperado, que é Jesus a pedir a indulgência dos Seus interlocutores para os
Seus desejos. E é tão comum ver esta prática religiosa em tantos dos que se
dizem crentes. Uma religiosidade que se apoia nesta «manipulação» de Deus,
querendo impor o que eu quero e não a disponibilidade para aceitar o que Deus
quer ou as simples vicissitudes da vida, é uma religiosidade vazia e sem
sentido, artificial e hipócrita. E sabemos como é uma realidade tão presente na
vida dos que se dizem religiosos mas que rejeitam a verdadeira natureza da fé
cristã. Quantos não fazem da sua vida espiritual uma espécie de relação
comercial ou troca de serviços com Deus, materializada em promessas a Nossa
Senhora de Fátima e outros santos mas sem ter como efeito uma conversão de vida
e uma atitude básica de louvor no dia a dia?
Jesus não condena o aparente desejo sincero e genuíno dos irmãos Tiago e
João. Obviamente que viver com Jesus para sempre é bom, e é o horizonte que
preside ao sentido da vida de cada um de nós. Porém, estes ainda não haviam
compreendido a forma do messianismo de Jesus, relido a partir da figura do
Servo de Deus isaíano. Os filhos de Zebedeu ainda tinham em mente as categorias
do Messias real de cariz político, que como guerreiro destruiria todas as
forças opressoras do povo, naquele caso os romanos. Ou seja, sentar-se à
direita e à esquerda de Jesus significaria adquirir o poder e a predominância
nesse reino que eles esperavam que Jesus instaurasse. Mas o Mestre, qual
agitador de consciências, responde com uma dupla pergunta: estariam eles
dispostos a beber o cálice de Jesus e a serem batizados com o mesmo batismo do
Senhor? Ou seja: estariam eles dispostos a imitar o Mestre na Sua entrega de
vida até à morte?
Não sabemos se a afirmação dos irmãos é apenas uma resposta politicamente
correta de elegância contextual, ou uma resposta convicta e consciente do que
estava em causa. Jesus confirma a resposta, mas refuta a lógica que a ela
preside. Jesus reitera que a glória pedida não é fruto de uma recompensa pelos
méritos em vida, mas sobretudo um dom gratuito da misericórdia divina.
Vendo a insatisfação dos
outros dez, Jesus aproveita a oportunidade para voltar a catequizar acerca do
verdadeiro espírito cristão. A grandeza do coração reside no serviço. O valor
da pessoa não se mede pelas coisas grandiosas que faz, tantas vezes
vangloriadas pelos próprios, mas antes pelo espírito de serviço desinteressado
manifestado nas ações. Mesmo na vida eclesial assistimos a esta busca do protagonismo,
do lugar de destaque que confira visibilidade. Quantos não se servem da Igreja
em vez de servir a Igreja! Os ministérios realizados no anonimato, apenas
debaixo do olhar de Deus, são os menos desejados, enquanto os de maior
expressão pública são frequentemente procurados. O Papa Francisco tem
procurado, no seu Pontificado, erradicar esta tendência narcisista e
egocentrista do seio da Igreja, transformada frequentemente numa verdadeira
feira de vaidades e que o próprio diagnostica como uma das doenças mais graves
do catolicismo. Por isso, que nunca deixe de se apregoar estas palavras de
Jesus: «quem entre vós quiser tornar-ser grande, será vosso servo, e quem
quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos».
... "não a disponibilidade para aceitar o que Deus quer ou as simples vicissitudes da vida,"...
ResponderEliminarUma postura de Job.