sexta-feira, 4 de março de 2016

O nome de Deus é misericórdia


No Domingo passado, o III do tempo da Quaresma, escutámos uma leitura retirada do Livro do Êxodo, mais concretamente Ex 3, 1-15. É um texto fundante para a identidade de Israel, e também para nós cristãos, que nos colocamos na senda do legado judaico, enquanto Novo Israel. É um texto que começa a desenhar, na história da salvação, a crença num Deus Único (monoteísmo), que ainda no tempo de Moisés veremos ganhar contornos mais nítidos. 

Em muitas Bíblias, esta passagem costuma surgir com dois títulos, que evidenciam duas realidades: a vocação de Moisés e a revelação do «nome» de Deus. Ora, tendo escutado à pouco tempo o Papa Francisco a dizer que «o nome de Deus é Misericórdia», gostaria de fazer uma reflexão sobre este texto à luz desta premissa: a misericórdia diz quem é Deus e quem nós somos (revelação e missão/vocação).

Em primeiro lugar, a revelação de Deus, aqui neste texto, é, no fundo, uma «des-velação»: Deus simultaneamente diz e não diz. O tetragrama sagrado,  יְהוָ֞ה, diz apenas a imutabilidade de Deus: «Aquele que era, que é que será sempre». Deus não muda: o Seu olhar sobre nós é sempre o mesmo, independentemente das nossas imperfeições e pecados. E assim, Deus é misericórdia.

Deus é Aquele que não se deixa aprisionar num nome. Se em Gn, a concessão do nome garantia o domínio do ser humano sobre as demais criaturas, no livro do Êxodo Deus não permite que isso suceda. Deus está sempre para além de nós, como dizia Catherine von Spyer, e permanece sempre mistério inefável. Um dos grandes riscos da humanidade é tentar absolutizar este mistério, fechar Deus nos nossos esquemas, convicções, especialidades, enjaulando o desígnio divino na rigidez das formas, letras e regras.

Deus é Misericórdia porque é Aquele que está atento (vê, escuta, conhece, desce...). É uma misericórdia que actua, que não vive na passividade, e por isso aproxima-se e chama, e porque conhece, desce à nossa humana condição. Isso é misericórdia.

A misericórdia de Deus manifesta-se também na Sua paciência. O Senhor não dá nada como perdido, fazendo até o absurdo e o impossível para nos recuperar (na dignidade de pessoas, pelo menos). A parábola da figueira no-lo diz: Deus aguarda, pacientemente, a nossa conversão, e tudo fará para que isso aconteça. Até adubar o que não é adubável...!

Mas este excerto diz também um pouco de quem somos nós quando nos confrontamos com a misericórdia. E, personificados em Moisés, descobrimo-nos pessoas normais a quem, por misericórdia, Deus um dia chamou. Não somos melhores nem piores que os outros, somos iguais, embora diferentes. Já Jesus adverte, na premissa da parábola também escutada nesse domingo: «E se não vos converterdes, morrereis todos do mesmo modo...». Nós somos pessoas incapacitadas a quem Deus capacita e em quem Deus confia. Moisés, apesar de ser gago, foi escolhido para uma missão tão grande e tão importante para aquele povo. Deus compromete-Se connosco, projecta-Se em nós (a sua figueira); Ele não escolhe os capacitados, mas capacita aqueles que escolhe. E isso é misericórdia.

No entanto, a condição humana não deixa de ser assaltada pelo medo, pelo temor. Foi o sentimento de Moisés diante da sarça ardente. O medo de olhar para Deus é um sintoma dos nossos tempos, pois implica o conhecimento de nós mesmos, e isso implica a nossa morte: morrer para nós e viver para Deus. Mas só (re)descobrimos a misericórdia numa atitude de contemplação de Deus, pois no olhar Deus «olhos nos olhos» experimentamos a superabundância da graça sobre o pecado. No perdão de Deus caem as nossas sandálias, os passos mal andados são erradicados da nossas história, e somos restituídos a essa «nudez» original, sem máscaras, do Éden paradisíaco, da vida plena de comunhão com Deus.

É este o convite para o ano da Misericórdia. Que nos deixemos amar por Deus para podermos amar ao Seu jeito.