sábado, 31 de outubro de 2020

Criação e Evolução: conciliação ou oposição?

 


Muitos colocam a questão: será a teoria evolucionista de Darwin compatível com a doutrina cristã (e judaica) da Criação do mundo? Não farei aqui um tratado de ciência, até porque não possuo as ferramentas necessárias para o fazer, mas procurarei esclarecer o sentido das narrativas da criação que encontramos no livro do Génesis, o primeiro livro do cânone bíblico.

É verdade que a relação entre fé e ciência nem sempre foi pacífica. Durante quase vinte séculos, a Igreja olhou a Bíblia na perspetiva da 'inerrância' e da 'literalidade', tentando fazer do biblicismo a sua forma de argumentar contra a ciência: tudo aquilo que a ciência postula como verdade, só pode ser aprovada se tiver correspondência direta na Bíblia e na (errónea) interpretação que se fazia dos seus escritos. O que é certo é que a Sagrada Escritura não é um livro de história, tal como a compreende hoje a modernidade. Os critérios da historiografia moderna não são os mesmos critérios que estão na base da redação das Escrituras Sagradas. Por isso, os autores bíblicos não procuram traduzir por escrito a história de Israel com os critérios da historiografia, mas antes partilhar a experiência de fé de um povo, transformada em história da salvação pelo reconhecimento da presença de Deus em todo o período histórico do povo.

É nesse sentido que nasce o livro do Génesis. Génesis quer dizer 'génese', origem. É o livro que narra as origens do mundo e do povo enquanto humanidade. Porém, do ponto de vista cronológico, este livro não é o primeiro a ser escrito. Apesar de se situar e nos situar nas origens (a primeira palavra da Bíblia é "Bereshit", no princípio), o livro de Génesis só foi escrito depois do exílio (século VI a.C.). Isto mostra como o interesse do povo de Israel não estava tanto na história, mas na teologia: se o povo enquanto tal, na sua identidade cultural e religiosa, havia nascido na aliança de Deus no Sinai, através da mediação de Moisés, havia também que completar a biblioteca sagrada com um livro que pudesse fazer remontar essa 'história' de Deus com a humanidade ao início de tudo. 

Os primeiros onze capítulos do Génesis têm como objeto narrativo as origens do universo e da humanidade. O texto, depois de uma longa história de transmissão oral e de redações escritas parciais e fragmentárias, estabiliza-se no já citado século VI a.C. Ainda que a temática do cosmos como criação de Deus fizesse parte da bagagem de fé do povo de Israel, é precisamente a partir da catástrofe que o exílio da Babilónia constituiu que a Criação entra definitivamente na tradição teológica bíblica. Por isso, mais do que falar de uma narrativa do "início", que remete para uma determinada realidade que se coloca numa linha cronológica precedente à própria história e ao próprio tempo, devemos falar de uma narrativa das "origens", enquanto algo que funda e dá consistência à realidade presente no seu ser, o seu fundamento último. Nesse sentido, os relatos da criação (falo em plural, porque até na própria narrativa vemos dois momentos distintos da criação) não têm a intenção de narrar um "início" histórico do mundo do ponto de vista científico, mas a sua "origem", o seu significado perenemente presente do ponto de vista antropológico. São, por isso, chamados de relatos "etiológicos", míticos, que mais do que afirmar o "como" e "quando" nasceu o mundo e o ser humano, procura sobretudo responder ao "porquê" da vida, e aí dizer que "Deus é Criador", sem grandes pretensões de exatidão histórica e científica (basta pensar que a palavra hebraica "iôm", traduzida na Bíblia por "dia", pode significar outras realidades de medição temporal, como era geológica); não pretendem descrever nem o primordial Big Bang nem a biografia paleontológica ou histórica do primeiro Homem. Talvez por isso o grande protagonista do relato não tem nome próprio: "'Adam" quer dizer "homem", não na sua singularidade (esse tem o nome hebraico de "îsh"), mas no sentido de humanidade, ser humano. A Criação do mundo por parte de Deus, tal como se manifesta na narrativa bíblica, não contradiz nem a Teoria do Big Bang nem a teoria da Evolução; pois os relatos bíblicos apenas pretendem afirmar a realidade divina como o princípio absoluto da vida. 

Mas até nisso a Bíblia não é inovadora. A leitura dos primeiros capítulos do Génesis faz emergir inegáveis contactos com os 'mitos de origem' dos povos circunvizinhos, nomeadamente a Mesopotâmia e a Babilónia. Estas afinidades literárias são identificáveis de forma particular nos relatos da criação, do dilúvio e da Torre de Babel (entre estas obras inspiradoras do livro de Génesis contam-se o "Enuma Elish" e "Gilgamesh"). Israel exprime, assim, a sua fé utilizando narrativas de outros povos, não como decalque, mas como manifestação da superioridade do Deus de Israel sobre o deus dos outros povos e nações. O mito constitui, deste modo, uma forma intuitiva de conhecimento da realidade, que aproxima a história do Homem através da forma da intuição e da linguagem simbólica, dando azo a uma leitura sapiencial e a uma verdadeira "teologia da história". A história do ser humano é vista à luz do seu princípio fundante e criador (e criativo), que é Deus, no qual o Homem encontra a sua essência, princípio e fim, imagem e semelhança.

Depois de vermos tudo isto, continuaremos a afirmar que a teoria da criação narrada no Génesis é oposta à teoria da evolução postulada por Darwin? De modo algum. Há muito que a Igreja deixou de defender o chamado "criacionismo", ou seja, a convicção de que o cosmos nasceu exatamente como vem relatado na Bíblia. O género literário e a intenção do autor do Génesis não vai nesse sentido. Porém, se a convicção bíblica é a de que Deus é Criador, também afirma que Deus é Providente, e que nada foge ao Seu desígnio. Logo, mesmo que do ponto de vista temporal não se possa estabelecer com exatidão histórica a existência do primeiro ser humano, o surgimento do primeiro Homem não pode, nos parâmetros da fé, escapar à acção providencial de Deus: tudo parte do Seu desígnio e da Sua vontade. Não somos produto do acaso, de uma 'evolução' que Lhe escapa e da qual Deus não toma parte. Talvez resida aqui um dos pontos de divergência entre a Bíblia e Darwin.