sábado, 8 de dezembro de 2018

Comentário à Liturgia da Palavra da Solenidade da Imaculada Conceição na "Liturgia Diária"


Celebramos hoje a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria. Apesar de ser um dogma com pouco mais de 150 anos, esta crença de que Maria foi concebida sem pecado original é já atestada em anos muito anteriores, nomeadamente em Portugal, onde o rei D. João IV mandou colocar, nas portas de algumas vilas e cidades, uma inscrição a recordar esse dado de fé. Enganamo-nos, porém, se olharmos esta solenidade apenas a partir daquilo que Maria se distingue de nós e se afigura, por isso, inalcançável. Pelo contrário, esta solenidade convida-nos a olhar para Maria como Mestra da fé, como aquela que, enquanto criatura, mais se aproximou do sonho de Deus para cada ser humano. Por isso a ela recorremos não só como intercessora mas também como guia espiritual no caminho.

Hoje as leituras apontam para Maria e convidam-nos a olhar para Aquela que além de ser mãe de Jesus se tornou a Sua primeira e mais excelsa discípula. Se na primeira leitura, retirada do livro de Génesis, o autor sagrado explica, mediante esta narrativa etiológica, a transgressão original e a grande tentação presente na humanidade de querer ser como Deus, o evangelho de Lucas responde, através de Maria, a esta desordem entretanto desencadeada. À criação de Eva por parte de Deus responde o mesmo Senhor com a nova criação que em Maria começa.
Mas olhemos para o texto e para a forma como Maria se deixa interpelar e envolver pelo projeto divino. É importante pensarmos em Nossa Senhora como alguém preservada por Deus para ser Mãe do Seu Filho, mas também como alguém que teve de exercer a sua liberdade para poder entrar no projeto divino. Maria não é uma semi-deusa com uma autoconsciência inata da sua missão nos desígnios de Deus, mas uma ‘mera’ criatura que vivia seriamente a sua fé e que por isso mesmo estaria mais apta a acolher a chamada de Deus. Esta adesão ao projeto de Deus manifesta-se perfeitamente neste diálogo que estabelece com o Anjo Gabriel. Muitos de nós pensam erradamente que Maria também duvidou, também não aceitou à primeira a proposta divina, ao perguntar: «Como será assim se eu não conheço homem?». Esta não pode ser vista, apesar da tradução assim o permitir, como uma interrogação de quem duvida, mas antes como a manifestação de uma disposição para o facto. Ou seja, Maria pergunta ao Anjo o que pode fazer para que isso se tornasse possível. E esta é a primeira condição para que possamos, como Maria, ser pessoas de fé verdadeira: não colocar obstáculos ou dúvidas à ação da Providência Divina, mas assumirmos a atitude de disponibilidade para entrar nesse projeto, ainda que carregado de incertezas e indefinições. Maria sabe que é a Deus que pertence o controlo da história e por isso também o da sua vida. Esse dado é facilmente reconhecível pela sua expressão que se tornou célebre: «Faça-se em mim segundo a Vossa palavra». Maria reproduz o «fiat» de Deus na criação e permite assim que o mesmo Deus criador possa tornar-se o Redentor em Seu Filho Jesus, como o Anjo havia descrito a Nossa Senhora. O sinal da verosimilhança deste acontecimento em Maria é dado pela inesperada fecundidade de Isabel, que mais tarde viria a reconhecer ‘in loco’. Contudo, a síntese deste texto e de toda a vida de Maria resume-se nas palavras finais do Anjo: «A Deus nada é impossível».
Em Maria, Deus contempla aquilo que gostaria de ver em cada um de nós. Se à partida se afigura difícil, a Palavra de Deus garante que não é impossível. Esta celebração litúrgica desafia-nos, por isso, a sermos discípulos ao jeito de Maria, a começar por esta disponibilidade para que se faça em nós segundo a vontade do Senhor. Deus não impõe, como não o fez a Maria. Mas se em Maria quis que o o Verbo de Deus se formasse e nascesse para ser Redentor, hoje o Senhor convida-nos a gerar a Jesus no nosso coração e na nossa vida para que O possamos anunciar, testemunhar e transmitir para salvação de tantos e tantas. A receita é a de Maria: deixar que Cristo se forme em nós, e assim tornar possível o difícil, seja na procura da santidade seja no serviço de evangelização que prestamos.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Comentário à Liturgia da Palavra do Domingo I do Advento na "Liturgia Diária"


Com o início do tempo do Advento damos igualmente início a um novo ano litúrgico e consequentemente a um novo ciclo de leituras, sendo que ao longo deste ciclo (Ano C) teremos a oportunidade de acompanhar de forma mais continuada o evangelista S. Lucas. O tempo de advento divide-se em dois momentos, que nos focalizam em outros tantos conteúdos: a esperança messiânica e a vinda definitiva de Jesus no fim dos tempos (até dia 16 de dezembro) e a preparação próxima da vinda histórica de Jesus e da celebração litúrgica do Seu nascimento (de 17 a 24 de dezembro). É sobretudo o convite incessante à preparação para o encontro com o Senhor, seja na última vinda seja na experiência litúrgica do encontro, que ecoa aos nossos ouvidos durante este tempo.
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A esperança na vinda de alguém que viesse restituir a justiça e estabelecer a paz, nomeadamente em tempos de instabilidade e guerra, era (e é) um dado incontornável da fé judaica. Assumindo várias configurações ao longo dos séculos (de tipo político, religioso, sacerdotal ou até uma entidade coletiva), esse Messias esperado foi alimentando a espiritualidade do povo eleito e reforçando a certeza de que as promessas de Deus se cumpririam. É este pano de fundo que preside à leitura do profeta Jeremias, imagem que também Isaías usa e que a tradição cristã irá aplicar em relação à identidade messiânica de Jesus: «farei brotar para David um rebento de justiça». Para nós cristãos, o horizonte é outro. Esse Messias esperado pelo povo veterotestamentário reconhecemo-lo em Jesus de Nazaré: é n’Ele que se cumprem todas as expetativas e esperanças do Povo de Deus. Nesse sentido, e porque a vinda histórica de Jesus já se efetuou e agora permanece como memória e fonte da vida cristã, o advento de hoje é a espera (e esperança) da última vinda do Senhor, como afirmamos na Santa Missa: «Vinde, Senhor Jesus» (tradução do refrão adventício «Maranatha»).

Os primeiros textos do Novo Testamento manifestam esta preocupação e necessidade imediata de preparar a vinda iminente do Senhor. A segunda leitura de hoje é prova disso mesmo. A 1ª epístola de S. Paulo aos Tessalonicenses, o primeiro dos livros do Novo Testamento a ser escrito, focaliza-se, do princípio ao fim, na segunda vinda do Senhor. Paulo convida a comunidade cristã de Tessalónica a preparar os seus corações e as suas vidas para esse encontro através da vivência das virtudes cristãs, nomeadamente a caridade e a procura de uma «santidade irrepreensível». Paulo combate e adverte para não cair na apatia; é importante «progredir ainda mais».

O tempo do advento convida-nos, por isso, a caminhar com esperança ao encontro de Cristo. Este caminho faz-se pelo progresso da vida espiritual, tal como ouvimos anteriormente, sem nos regermos pela mediania ou mediocridade de critérios ou saciados com o que já fizemos ou somos. Não podemos dar por certa a nossa salvação por nos considerarmos suficientemente crentes. Paulo exortava as suas comunidades, como a de hoje, a não se deixar alienar perante a iminência da vinda de Cristo, mas a continuar a lutar para alcançar a salvação. Isso mesmo nos diz Jesus no evangelho de hoje, advertindo para que os seus interlocutores (de ontem e de hoje) não deixem que os seus corações se tornem insensíveis e fechados aos sinais divinos. No fundo, devemos ver esta «santidade irrepreensível» como uma questão de vida ou de morte, como a grande questão da existência cristã.

O apelo a «vigiar e orar» mais não é do que um convite a ter a mente e o coração no registo certo. As inúmeras solicitações da vida, muitas delas importantes, não podem reduzir a fé a uma mera devoção (e muito menos superstição). Deus tem de ser levado a sério, e sobretudo provocar uma resposta de conversão e mudança de vida. Tudo aquilo que esmaga o espaço de Deus nas nossas vidas (aqui simbolizados na intemperança, embriaguez e preocupações da vida) faz-nos escravos e impede essa libertação próxima anunciada por Jesus. Se é verdade que essa realidade encontra a sua plenitude na última vinda de Jesus, a Sua permanência na vida da Igreja mediante o Seu Espírito, a Sua Palavra e os Seus Sacramentos exigem de cada um de nós uma atitude constante de atenção. Ler os sinais de Deus na história de hoje é condição sine qua non para que o Senhor venha à nossa vida e não nos encontre desprevenidos. E ter esta leitura é estar inteiro nas coisas (na missa, por exemplo) e atento à presença de Jesus que vem ao nosso encontro (na Escritura, na misericórdia, na pessoa dos pobres e outros nossos irmãos). O tempo do advento, muito preenchido do ponto de vista social, com todas as solicitações, festas e apelos, não nos deve desfocar do essencial deste caminho nem deve obstaculizar a vinda de Jesus aos corações dos cristãos.