domingo, 18 de março de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo V da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)


Mais uma vez, este domingo convida o leitor a olhar para a aliança de Deus com os homens. De facto, ao longo deste itinerário quaresmal a liturgia da palavra usa de forma abundante a linguagem típica da aliança, como critério para o exame de consciência e revisão de vida do Povo de Deus. Porém, com a aproximação da celebração do mistério pascal e a intensificação do processo de Jesus, que culminará na Sua paixão e morte, esta linguagem vai ganhando novos e redefinidos contornos. Pela primeira vez em toda a Bíblia é usada a expressão «aliança nova», por parte do profeta Jeremias, termo esse que Jesus acolherá no momento da Última Ceia e a Igreja perpetua na celebração da Eucaristia como memorial da Páscoa do Senhor. É esse sentido da «nova aliança» que a liturgia deste domingo desenvolve mediante a Palavra proposta, abrindo a porta para a Sua concretização plena no mistério pascal de Cristo.
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Falar de aliança significa falar de uma relação, de uma responsabilidade, de uma pertença recíproca, e no contexto da história da salvação significa a relação particular que Deus quis estabelecer com a humanidade através do povo eleito, Israel, Sua «propriedade particular», e na plenitude dos tempos por meio de Jesus Cristo, Seu Filho. No Antigo Testamento, a aliança (berît, em hebraico) exige sempre o empenho daquele que assume diante de outro um certo compromisso, que neste contexto se configura em promessa. Quando o sentido se alargou para o âmbito legalista, com o sentido de pato bilateral, na reciprocidade de direitos e deveres, a Escritura procurou sempre salvaguardar a imutável fidelidade de Deus, mesmo diante das constantes violações humanas da dita aliança. Deus não se cansa de renovar a aliança, olhando com misericórdia para o Seu povo peregrino. No entanto, como bem nota o profeta, os fiéis caíram no erro de se ficar pela exterioridade da letra da Lei (Torah), recebida e comunicada por Moisés, privilegiando o sentido jurídico da aliança (direitos e deveres) em detrimento da dimensão relacional e amorosa que está na sua base. Jeremias anuncia um tempo novo, uma «aliança nova», no sentido de uma renovação autêntica da relação interior e espiritual entre Deus e os homens: «hei-de imprimir a minha lei no íntimo da sua alma e gravá-la-ei no seu coração». Ontem como hoje, Deus não quer que a aliança se torne um fardo, um estatuto meramente jurídico, formal e rígido, que restringe a liberdade e transforma em dever e segurança aquilo que deveria ser relação e amor. Ontem como hoje, a voz do profeta se faz sentir para dizer que a religião autêntica não pode assentar num vínculo meramente exterior e convencional, mas apoiar-se numa relação de interioridade e autenticidade. A vida espiritual dos fiéis não se alimenta de mecanismos e rotinas sem substância, mas de um conhecimento profundo de Deus, no sentido bíblico do termo e que Jeremias veicula: entrar numa relação de intimidade e de comunhão plena de vida ao ponto de atingir uma convergência de sentimentos e olhar. 
Este conhecimento deve ser espoletado por uma vontade. «Senhor, nós queríamos ver Jesus», diziam os gregos a um dos discípulos do Senhor, cumprindo o anúncio profético da primeira leitura relativamente à abertura universal também aos pagãos: «Todos me conhecerão». O desejo de estar com Jesus, para O conhecer, amar e seguir, é condição sine qua non para viver esta «aliança nova», que agora ganha a forma da cruz de Cristo. Em Jesus, imprimir a lei na alma e gravá-la no coração significa percorrer o mesmo caminho do Mestre, partilhar o Seu destino e imitar os seus gestos. A «aliança nova» tem um rosto e tem um nome, e pelo Seu Espírito derramado em nós pelo batismo, somos ‘cristificados’, identificados com Cristo. A lei que Cristo postula não é a lei da letra, mas do Espírito. O exemplo de Jesus torna-se (a) lei e motor de vida, chave de leitura da existência cristã. O Evangelho deste domingo insiste na necessidade de ‘passar’ com Cristo para uma outra dimensão da aliança: o sentido da vida está na capacidade de fazê-la dom. Saber morrer para si e viver em Deus, deixando que a semente lançada cresça no silêncio de quem não busca protagonismo mas permite que o Senhor a faça crescer e frutificar, são atitudes básicas que a imagem do grão de trigo nos inspiram. E o verdadeiro fruto da vida cristã enquanto configuração com Cristo é servi-l’O com humildade e tornar presente no mundo esta lei invisível que se traz no coração mediante a coerência do testemunho. Porque, como alguém um dia disse, «quem não vive para servir, não serve para viver».

domingo, 11 de março de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo IV da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)


O caminho quaresmal, procurando reproduzir, em chave litúrgica, o caminho do Êxodo, interpela cada crente a repensar a sua vida e a sua história à luz de Deus. O veemente apelo à conversão, que ecoa em cada palavra deste itinerário, tem como fundo permanente um passado de infidelidade à aliança que adensa a distância entre Deus e a humanidade. É este olhar crente que o povo de Israel tinha sobre si. Os acontecimentos históricos eram lidos e interpretados à luz da fé, e eram entendidos no quadro de uma pedagogia divina de retribuição ou de punição. Foi assim com o caminho exodal e com o exílio, entre outros, motivos directa ou indirectamente evocados na liturgia da palavra. A celebração deste domingo demonstra esta possibilidade de passar das trevas à luz, da ruína à glória, do pecado à graça. Deus, «que é rico em misericórdia», segundo a linguagem paulina, não desiste do Seu Povo e tudo faz para o reconquistar: seja através de homens inesperados, como Ciro, seja através do envio de Seu próprio Filho. E assim se cumpre o que diz Paulo: «a salvação não vem de vós; é dom de Deus».
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O Segundo Livro das Crónicas, fazendo eco das vicissitudes históricas do Povo de Israel, recorda as suas constantes infidelidades e atrocidades, que contrastam com a permanente benevolência de Deus, que nunca cessou de lhes enviar mensageiros e suscitar caminhos de conversão e renovação da aliança. Muitos dos autores bíblicos afirmam que a invasão da Terra Santa por parte de pagãos, a destruição do Templo e a consequente deportação para a Babilónia tiveram como raíz o esquecimento e o abandono de Deus. É este de facto o grande pecado de Israel: conhecer a Lei sem a praticar (segundo o espírito), compreender a história da salvação mas afastar-se do Seu motor e interveniente primeiro. Contudo, mesmo diante deste cenário aparentemente desolador, Deus é capaz de reconstruir e reconduzir a história para bem do Seu povo eleito. Para isso faz emergir instrumentos de salvação até das proveniências mais inesperadas, como sucede com Ciro, rei da Pérsia, responsável pelo regresso dos judeus a Jerusalém. Efectivamente, como diz S. Paulo, a salvação «não se deve às obras: ninguém se pode gloriar»; ela nasce sempre por um golpe de misericórdia.
Como se sabe, a Bíblia está carregada de histórias de verdadeiras reviravoltas. Deus faz acontecer realidades de vida onde aparentemente só reinam as trevas e a escuridão. O próprio Evangelho de João faz mênção desse paradoxo no seu prólogo, dizendo que a «luz brilha nas trevas, mas as trevas não a receberam»; reafirma, porém, que «a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus». É este o pano de fundo da leitura evangélica deste domingo. O evangelista parte de uma constatação («a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras») para poder propor uma solução para a ‘escuridão’ do presente. Seria normal, nos tempos de perseguição e frustração que viviam as comunidades joaninas, a escolha da via mais simples, que era a negação d’Aquele que haviam conhecido e aderido. A memória do Êxodo reaviva no leitor a certeza de que mesmo nos momentos de maior dificuldade, em que Deus parece alhear-se e fazer silêncio, é apenas mais uma etapa de prova rumo à Terra prometida. Mas esta etapa, que cada crente é desafiado a viver no seu itinerário de fé, surge marcada sob o sinal do paradoxo: assim como no caminho do deserto, a serpente, símbolo da tentação e perdição, se tornou lugar de salvação para os que ela contemplavam, assim a cruz, sinal de ignomínia e condenação, se tornou lugar de glorificação para Aquele que nela esteve suspenso e para os que O reconhecem como o Filho de Deus. Deste modo, a liturgia nos diz que a fé não é um dado adquirido por si mesmo, nem a felicidade sempre rima com felicidade. Não é fácil acreditar num Deus assim, que ama tanto o mundo «que entregou o seu Filho Unigénito». Mas a cruz, enquanto lugar do amor, torna-se o lugar do encontro com Deus em Jesus Cristo, e torna-se ela mesma a medida de vida do cristão: ser discípulo é percorrer a via de Jesus, no meio de paradoxos e ambiguidades, para com Ele entrar na glória e na comunhão plena com o Pai, que conduz cada um de nós a oferecer-se aos outros e a manifestar as obras de Deus. E assim se concretiza o sonho de Paulo: «nós somos obra de Deus, criados em Jesus Cristo, em vista das boas obras que Deus de antemão preparou, como caminho que devemos seguir».

domingo, 4 de março de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo III da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)

(Purificação do Templo, El Greco)

O Evangelho segundo S. João tem uma estrutura muito particular, não só do ponto de vista teológico mas igualmente na apresentação de uma certa ‘histografia’ de Jesus. Desde o início do ministério público de Jesus até ao Seu mistério pascal, o quarto evangelista narra a presença de Jesus em Jerusalém por três vezes no contexto de celebração da Páscoa. O episódio da purificação do Templo insere-se nessa primeira ida a Jerusalém, mas assume uma configuração diferente da narrativa dos sinópticos: enquanto que nestes o gesto profético de Jesus precipitou o Seu processo de condenação e morte, no evangelho de João está ao serviço de uma teologia dos sinais que caracterizam os primeiros 12 capítulos deste livro. Deste modo Jesus mete em marcha uma ampla reconfiguração da fé do povo judaico e propõe uma renovada interpretação da Lei de Moisés (Decálogo), código da aliança entre Deus e o Povo que a primeira leitura expõe. E projecta para o Seu mistério pascal a chave hermenêutica de toda a Sua vida e pessoa, onde se revela o verdadeiro milagre que os judeus pedem e onde se manifesta a sabedoria que os gregos procuram.
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Aquilo que incomodou os judeus daquele tempo é a mesma realidade que hoje continua a importunar os membros da Igreja, novo Povo de Deus. A palavra de Jesus é incómoda e desafiante, muitas vezes escandalosa e provocadora. Ontem como hoje, na busca de uma vivência mais plena da religião, Jesus deseja purificar a essência do verdadeiro culto, das nossas liturgias e práticas de fé. Ontem como hoje, Jesus desafia a regressar à centralidade de Deus e da pessoa, em detrimento de uma ‘lei’ desencarnada e desprovida do seu verdadeiro espírito.
Efectivamente, «Ele bem sabia o que há no homem». Os escritos veterotestamentários já nos testemunham este olhar profundo de Deus que não se fica pelas aparências, mas olha o coração; Jesus apenas se limita a evidenciar este olhar do Pai que não pode pactuar com a hipocrisia de quem diz acreditar sem verdadeiramente se converter. Aliás, o Decálogo, que hoje nos é dado na primeira leitura a partir da tradição do Êxodo, não é um mero manual de bons costumes ou conduta ética, para ser seguido fiel e cegamente como caminho único e exclusivo de salvação. Os «10 mandamentos», como vulgarmente os conhecemos, são antes de mais um dom de Deus, uma resposta divina à fragilidade do ser humano, uma acção gratuita da misericórdia de um Deus que vê o Seu povo vacilar e que por isso oferece como dom e sob a categoria de ‘lei divina’ as palavras que permitem viver mais plenamente a vocação humana e a aliança com Deus.
Porém, esta obediência à lei deve ser vivida em liberdade, na procura de uma sintonia perfeita entre dois corações: o humano e o divino. No fundo, mais do que vencido, é preciso estar-se convencido da proposta do Senhor, e aderir não só aparente mas realmente. É isso mesmo que Jesus procura evidenciar através do gesto da purificação. Geralmente, o evangelho de S. João deve ser lido como um díptico: a realidade física e a realidade teológico-espiritual, em que esta interpreta aquela. Só assim assume a categoria de sinal que remete para uma dimensão superior ao acto físico enquanto tal. Purificar o Templo significa erradicar o que é nefasto da realidade religiosa mais sagrada do tempo, abalando as estruturas judaicas e a forma como concebiam o culto e exploravam o povo; mas para os destinatários do evangelho, que já assumiram a ressurreição como realidade e presenciaram historicamente a destruição do Templo anunciada por Jesus (ano 70 d.C.), significa igualmente purificar e sacralizar o novo Templo, que é o Corpo de Cristo, a Igreja, nascida do lado aberto de Jesus na Cruz. Deste modo, para os cristãos de hoje, o gesto profético de Jesus deve ecoar aos ouvidos com veemência e como desafio: desafio a uma Igreja não impecável mas arejada, centralizada na gratuidade do louvor de Deus, numa liturgia coerente com a vida, que abre as portas a quem nela quer entrar. No fundo, como tanto tem advertido o Papa Francisco, é necessário que os agentes pastorais não se refugiem nas regras e normas que obstaculizam o olhar da misericórdia sobre a pessoa humana, agindo tantas vezes como controladores da graça e não como facilitadores. É que «a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante» (EG 47).