Mais uma vez, este domingo convida o leitor a olhar
para a aliança de Deus com os homens. De facto, ao longo deste itinerário
quaresmal a liturgia da palavra usa de forma abundante a linguagem típica da
aliança, como critério para o exame de consciência e revisão de vida do Povo de
Deus. Porém, com a aproximação da celebração do mistério pascal e a
intensificação do processo de Jesus, que culminará na Sua paixão e morte, esta
linguagem vai ganhando novos e redefinidos contornos. Pela primeira vez em toda
a Bíblia é usada a expressão «aliança nova», por parte do profeta Jeremias,
termo esse que Jesus acolherá no momento da Última Ceia e a Igreja perpetua na
celebração da Eucaristia como memorial da Páscoa do Senhor. É esse sentido da
«nova aliança» que a liturgia deste domingo desenvolve mediante a Palavra
proposta, abrindo a porta para a Sua concretização plena no mistério pascal de
Cristo.
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Falar de aliança significa falar de uma relação, de uma responsabilidade,
de uma pertença recíproca, e no contexto da história da salvação significa a
relação particular que Deus quis estabelecer com a humanidade através do povo
eleito, Israel, Sua «propriedade particular», e na plenitude dos tempos por
meio de Jesus Cristo, Seu Filho. No Antigo Testamento, a aliança (berît, em hebraico) exige
sempre o empenho daquele que assume diante de outro um certo compromisso, que
neste contexto se configura em promessa. Quando o sentido se alargou para o
âmbito legalista, com o sentido de pato bilateral, na reciprocidade de direitos
e deveres, a Escritura procurou sempre salvaguardar a imutável fidelidade de
Deus, mesmo diante das constantes violações humanas da dita aliança. Deus não
se cansa de renovar a aliança, olhando com misericórdia para o Seu povo
peregrino. No entanto, como bem nota o profeta, os fiéis caíram no erro de se
ficar pela exterioridade da letra da Lei (Torah),
recebida e comunicada por Moisés, privilegiando o sentido jurídico da aliança
(direitos e deveres) em detrimento da dimensão relacional e amorosa que está na
sua base. Jeremias anuncia um tempo novo, uma «aliança nova», no sentido de uma
renovação autêntica da relação interior e espiritual entre Deus e os homens:
«hei-de imprimir a minha lei no íntimo da sua alma e gravá-la-ei no seu
coração». Ontem como hoje, Deus não quer que a aliança se torne um fardo, um
estatuto meramente jurídico, formal e rígido, que restringe a liberdade e
transforma em dever e segurança aquilo que deveria ser relação e amor. Ontem
como hoje, a voz do profeta se faz sentir para dizer que a religião autêntica
não pode assentar num vínculo meramente exterior e convencional, mas apoiar-se
numa relação de interioridade e autenticidade. A vida espiritual dos fiéis não
se alimenta de mecanismos e rotinas sem substância, mas de um conhecimento
profundo de Deus, no sentido bíblico do termo e que Jeremias veicula: entrar numa
relação de intimidade e de comunhão plena de vida ao ponto de atingir uma
convergência de sentimentos e olhar.
Este conhecimento deve ser espoletado
por uma vontade. «Senhor, nós queríamos ver Jesus», diziam os gregos a um dos
discípulos do Senhor, cumprindo o anúncio profético da primeira leitura
relativamente à abertura universal também aos pagãos: «Todos me conhecerão». O
desejo de estar com Jesus, para O conhecer, amar e seguir, é condição sine qua non para viver esta «aliança
nova», que agora ganha a forma da cruz de Cristo. Em Jesus, imprimir a lei na
alma e gravá-la no coração significa percorrer o mesmo caminho do Mestre,
partilhar o Seu destino e imitar os seus gestos. A «aliança nova» tem um rosto
e tem um nome, e pelo Seu Espírito derramado em nós pelo batismo, somos
‘cristificados’, identificados com Cristo. A lei que Cristo postula não é a lei
da letra, mas do Espírito. O exemplo de Jesus torna-se (a) lei e motor de vida,
chave de leitura da existência cristã. O Evangelho deste domingo insiste na
necessidade de ‘passar’ com Cristo para uma outra dimensão da aliança: o
sentido da vida está na capacidade de fazê-la dom. Saber morrer para si e viver
em Deus, deixando que a semente lançada cresça no silêncio de quem não busca
protagonismo mas permite que o Senhor a faça crescer e frutificar, são atitudes
básicas que a imagem do grão de trigo nos inspiram. E o verdadeiro fruto da
vida cristã enquanto configuração com Cristo é servi-l’O com humildade e tornar
presente no mundo esta lei invisível que se traz no coração mediante a
coerência do testemunho. Porque, como alguém um dia disse, «quem não vive para
servir, não serve para viver».