O caminho quaresmal, procurando reproduzir, em chave
litúrgica, o caminho do Êxodo, interpela cada crente a repensar a sua vida e a
sua história à luz de Deus. O veemente apelo à conversão, que ecoa em cada palavra
deste itinerário, tem como fundo permanente um passado de infidelidade à
aliança que adensa a distância entre Deus e a humanidade. É este olhar crente
que o povo de Israel tinha sobre si. Os acontecimentos históricos eram lidos e
interpretados à luz da fé, e eram entendidos no quadro de uma pedagogia divina
de retribuição ou de punição. Foi assim com o caminho exodal e com o exílio,
entre outros, motivos directa ou indirectamente evocados na liturgia da palavra.
A celebração deste domingo demonstra esta possibilidade de passar das trevas à
luz, da ruína à glória, do pecado à graça. Deus, «que é rico em misericórdia»,
segundo a linguagem paulina, não desiste do Seu Povo e tudo faz para o
reconquistar: seja através de homens inesperados, como Ciro, seja através do
envio de Seu próprio Filho. E assim se cumpre o que diz Paulo: «a salvação não
vem de vós; é dom de Deus».
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O Segundo Livro das Crónicas, fazendo eco das vicissitudes históricas do
Povo de Israel, recorda as suas constantes infidelidades e atrocidades, que
contrastam com a permanente benevolência de Deus, que nunca cessou de lhes
enviar mensageiros e suscitar caminhos de conversão e renovação da aliança.
Muitos dos autores bíblicos afirmam que a invasão da Terra Santa por parte de pagãos,
a destruição do Templo e a consequente deportação para a Babilónia tiveram como
raíz o esquecimento e o abandono de Deus. É este de facto o grande pecado de
Israel: conhecer a Lei sem a praticar (segundo o espírito), compreender a
história da salvação mas afastar-se do Seu motor e interveniente primeiro. Contudo,
mesmo diante deste cenário aparentemente desolador, Deus é capaz de reconstruir
e reconduzir a história para bem do Seu povo eleito. Para isso faz emergir
instrumentos de salvação até das proveniências mais inesperadas, como sucede
com Ciro, rei da Pérsia, responsável pelo regresso dos judeus a Jerusalém.
Efectivamente, como diz S. Paulo, a salvação «não se deve às obras: ninguém se
pode gloriar»; ela nasce sempre por um golpe de misericórdia.
Como se sabe, a Bíblia está carregada
de histórias de verdadeiras reviravoltas.
Deus faz acontecer realidades de vida onde aparentemente só reinam as
trevas e a escuridão. O próprio Evangelho de João faz mênção desse paradoxo no
seu prólogo, dizendo que a «luz brilha nas trevas, mas as trevas não a
receberam»; reafirma, porém, que «a todos que o receberam deu o poder de se
tornarem filhos de Deus». É este o pano de fundo da leitura evangélica deste
domingo. O evangelista parte de uma constatação («a luz veio ao mundo e os
homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras») para
poder propor uma solução para a ‘escuridão’ do presente. Seria normal, nos
tempos de perseguição e frustração que viviam as comunidades joaninas, a escolha
da via mais simples, que era a negação d’Aquele que haviam conhecido e aderido.
A memória do Êxodo reaviva no leitor a certeza de que mesmo nos momentos de
maior dificuldade, em que Deus parece alhear-se e fazer silêncio, é apenas mais
uma etapa de prova rumo à Terra prometida. Mas esta etapa, que cada crente é
desafiado a viver no seu itinerário de fé, surge marcada sob o sinal do
paradoxo: assim como no caminho do deserto, a serpente, símbolo da tentação e
perdição, se tornou lugar de salvação para os que ela contemplavam, assim a
cruz, sinal de ignomínia e condenação, se tornou lugar de glorificação para
Aquele que nela esteve suspenso e para os que O reconhecem como o Filho de
Deus. Deste modo, a liturgia nos diz que a fé não é um dado adquirido por si
mesmo, nem a felicidade sempre rima com felicidade. Não é fácil acreditar num
Deus assim, que ama tanto o mundo «que entregou o seu Filho Unigénito». Mas a cruz,
enquanto lugar do amor, torna-se o lugar do encontro com Deus em Jesus Cristo,
e torna-se ela mesma a medida de vida do cristão: ser discípulo é percorrer a
via de Jesus, no meio de paradoxos e ambiguidades, para com Ele entrar na
glória e na comunhão plena com o Pai, que conduz cada um de nós a oferecer-se
aos outros e a manifestar as obras de Deus. E assim se concretiza o sonho de
Paulo: «nós somos obra de Deus, criados em Jesus Cristo, em vista das boas
obras que Deus de antemão preparou, como caminho que devemos seguir».
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