domingo, 11 de março de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo IV da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)


O caminho quaresmal, procurando reproduzir, em chave litúrgica, o caminho do Êxodo, interpela cada crente a repensar a sua vida e a sua história à luz de Deus. O veemente apelo à conversão, que ecoa em cada palavra deste itinerário, tem como fundo permanente um passado de infidelidade à aliança que adensa a distância entre Deus e a humanidade. É este olhar crente que o povo de Israel tinha sobre si. Os acontecimentos históricos eram lidos e interpretados à luz da fé, e eram entendidos no quadro de uma pedagogia divina de retribuição ou de punição. Foi assim com o caminho exodal e com o exílio, entre outros, motivos directa ou indirectamente evocados na liturgia da palavra. A celebração deste domingo demonstra esta possibilidade de passar das trevas à luz, da ruína à glória, do pecado à graça. Deus, «que é rico em misericórdia», segundo a linguagem paulina, não desiste do Seu Povo e tudo faz para o reconquistar: seja através de homens inesperados, como Ciro, seja através do envio de Seu próprio Filho. E assim se cumpre o que diz Paulo: «a salvação não vem de vós; é dom de Deus».
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O Segundo Livro das Crónicas, fazendo eco das vicissitudes históricas do Povo de Israel, recorda as suas constantes infidelidades e atrocidades, que contrastam com a permanente benevolência de Deus, que nunca cessou de lhes enviar mensageiros e suscitar caminhos de conversão e renovação da aliança. Muitos dos autores bíblicos afirmam que a invasão da Terra Santa por parte de pagãos, a destruição do Templo e a consequente deportação para a Babilónia tiveram como raíz o esquecimento e o abandono de Deus. É este de facto o grande pecado de Israel: conhecer a Lei sem a praticar (segundo o espírito), compreender a história da salvação mas afastar-se do Seu motor e interveniente primeiro. Contudo, mesmo diante deste cenário aparentemente desolador, Deus é capaz de reconstruir e reconduzir a história para bem do Seu povo eleito. Para isso faz emergir instrumentos de salvação até das proveniências mais inesperadas, como sucede com Ciro, rei da Pérsia, responsável pelo regresso dos judeus a Jerusalém. Efectivamente, como diz S. Paulo, a salvação «não se deve às obras: ninguém se pode gloriar»; ela nasce sempre por um golpe de misericórdia.
Como se sabe, a Bíblia está carregada de histórias de verdadeiras reviravoltas. Deus faz acontecer realidades de vida onde aparentemente só reinam as trevas e a escuridão. O próprio Evangelho de João faz mênção desse paradoxo no seu prólogo, dizendo que a «luz brilha nas trevas, mas as trevas não a receberam»; reafirma, porém, que «a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus». É este o pano de fundo da leitura evangélica deste domingo. O evangelista parte de uma constatação («a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras») para poder propor uma solução para a ‘escuridão’ do presente. Seria normal, nos tempos de perseguição e frustração que viviam as comunidades joaninas, a escolha da via mais simples, que era a negação d’Aquele que haviam conhecido e aderido. A memória do Êxodo reaviva no leitor a certeza de que mesmo nos momentos de maior dificuldade, em que Deus parece alhear-se e fazer silêncio, é apenas mais uma etapa de prova rumo à Terra prometida. Mas esta etapa, que cada crente é desafiado a viver no seu itinerário de fé, surge marcada sob o sinal do paradoxo: assim como no caminho do deserto, a serpente, símbolo da tentação e perdição, se tornou lugar de salvação para os que ela contemplavam, assim a cruz, sinal de ignomínia e condenação, se tornou lugar de glorificação para Aquele que nela esteve suspenso e para os que O reconhecem como o Filho de Deus. Deste modo, a liturgia nos diz que a fé não é um dado adquirido por si mesmo, nem a felicidade sempre rima com felicidade. Não é fácil acreditar num Deus assim, que ama tanto o mundo «que entregou o seu Filho Unigénito». Mas a cruz, enquanto lugar do amor, torna-se o lugar do encontro com Deus em Jesus Cristo, e torna-se ela mesma a medida de vida do cristão: ser discípulo é percorrer a via de Jesus, no meio de paradoxos e ambiguidades, para com Ele entrar na glória e na comunhão plena com o Pai, que conduz cada um de nós a oferecer-se aos outros e a manifestar as obras de Deus. E assim se concretiza o sonho de Paulo: «nós somos obra de Deus, criados em Jesus Cristo, em vista das boas obras que Deus de antemão preparou, como caminho que devemos seguir».

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