Misericórdia e mísera (misericordia et
misera)...
assim começa a mais recente Carta Apostólica do Santo Padre na conclusão do
Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Naturalmente, a fecundidade deste
Jubileu não se fecha nestas inspiradas e inspiradoras letras do nosso Papa, mas
também não nos deixa sossegados na passividade de uma história eclesial que se
limitou a viver mais um momento jubilar. No fundo, permanece a questão: e
agora?!
O Papa lança o mote no n. 16 desta mesma carta: «Termina
o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia do nosso
coração permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se inclina
sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós possamos imitá-Lo
inclinando-nos sobre os irmãos. A saudade que muitos sentem de regressar à casa
do Pai, que aguarda a sua chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras
e generosas da ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar,
introduziu-nos no caminho da caridade, que somos chamados a percorrer
todos os dias com fidelidade e alegria. É a estrada da misericórdia que torna
possível encontrar tantos irmãos e irmãs que estendem a mão para que alguém a
possa agarrar a fim de caminharem juntos». Efectivamente, a vontade do
Santa padre é mesmo a de efectuar esta revolução pastoral: a afirmação
da misericórdia como critério e como forma eclesial por excelência. No
dinamismo da complexa vida eclesial, a misericórdia não pode permanecer como um
mero apêndice ou decoração nas múltiplas actividades das nossas comunidades;
ela deve ser o motor das próprias rotinas, singulares e comunitárias, na vida
do cristão.
No fundo, o Papa quer que a Igreja respire
misericórdia. O simbolismo da Porta Santa anuncia isto mesmo: que a Igreja, no
seu todo, inale o odor da misericórdia divina, o deixe entrar em todas as
dimensões da sua vida e não bloqueie o acesso a quem a procure. Por isso, mesmo
que materialmente as «portas santas» sejam fechadas, a Porta da Misericórdia
permanecerá aberta; mesmo que tenha chegado ao fim o Jubileu Extraordinário da
Misericórdia, perpetuar-se-à o Jubileu Ordinário da Misericórdia. A própria
faculdade expandida a todos os sacerdotes na absolvição de certos pecados
«reservados ao bispo» (neste caso, o aborto) manifesta este desejo de que as
portas da misericórdia divina jamais se fechem para quem a quer receber de
coração arrependido; como no caso da mulher adúltera, no cap. 8 do Evangelho de
S. João, a «misericórdia triunfa sobre o juízo», a pessoa triunfa sobre a lei,
o Espírito triunfa sobre a letra. Bendito seja Deus porque nos concedeu,
mediante a intuição (inspirada) do Santo Padre, a possibilidade de renovar (e
refundar) o nosso olhar misericordioso sobre tudo (e todos) o(s) que nos
rodeia(m).
Convido-vos a ler na íntegra esta Carta
profundamente programática. Como diz o Santo Padre, «o perdão é o sinal
mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a sua vida» (n.2).
O Papa Francisco adverte para um perigo: «a tentação de se limitar a fazer a
"teoria da misericórdia" é superada na medida em que esta se faz vida
diária de participação e partilha» (n.20). Por isso, no fim adverte para a
urgência de uma verdadeira cultura da misericórdia, em que as obras
da misericórdia ganham a densidade de uma «artesanalidade», pois «nenhuma delas
é cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil modos e, embora seja
único o Deus que as inspira e única a "matéria" de que são feitas, ou seja, a
própria misericórdia, cada uma adquire uma forma distinta» (n.20). Não se confunde
com filantropia, nem com meros sentimentos de comoção; é uma verdadeira
comunhão com o olhar de Cristo sobre a humanidade, como tão bem testemunha o
ícone deste Jubileu Extraordinário; porque é simultaneamente divina (enquanto
dom) e humana (enquanto acção), «a cultura da misericórdia forma-se na oração
assídua, na abertura dócil à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos
Santos e na solidariedade concreta para com os pobres. É um convite premente
para não se equivocar onde é determinante comprometer-se (n.20)».
Por isso, o Papa, em jeito de definição da essência
da misericórdia que se exige a cada crente, define a mesma em vários vectores,
que devem ser objecto do acolhimento e da práxis das comunidades:
- A Misericórdia como
celebração, em que mais do que um exercício parenético, se torna
verdadeiramente realizadora (mediante a acção de Deus que santifica) e
libertadora (na alegria de quem se sente acolhido, amado e perdoado);
- A Misericórdia como
consolação, manifestada sobretudo na solicitude e acompanhamento próximo
às situações mais frágeis e dramáticas da vida humana (crises familiares,
momentos de luto pela morte de alguém, etc.);
- A Misericórdia como renovação e redenção, que
tem a capacidade de regenerar aquilo que estava decaído, mediante o
encontro de dois corações: «o de Deus e o do Homem.
(...) Nisto
se nota que somos verdadeiramente uma "nova criação" (Gal 6, 15): sou amado,
logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma vida nova;
fui "misericordiado" e, consequentemente, feito instrumento da
misericórdia» (n.16).
- A Misericórdia como
imaginação, nesta criatividade operante que encontra novas formas de
expressão no mundo de hoje. Importa, a este ponto, (re)descobrir novas
obras de misericórdia e (re)descobrir novos lugares onde a misericórdia
possa ser vivida com horizontes renovados e onde a Igreja possa ser
autenticamente a «túnica de Cristo» (n.10).
Aos padres lança igualmente um forte apelo: «peço-vos
para serdes acolhedores com todos, testemunhas da ternura
paterna não obstante a gravidade do pecado, solícitos em ajudar
a refletir sobre o mal cometido, claros ao apresentar os princípios morais, disponíveis para
acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando com paciência o seu
passo, clarividentes no
discernimento de cada um dos casos, generosos na concessão do perdão de Deus. Como Jesus,
perante a adúltera, optou por permanecer em silêncio para a salvar da
condenação à morte, assim também o sacerdote no confessionário seja magnânimo
de coração, ciente de que cada penitente lhe recorda a sua própria condição
pessoal: pecador mas ministro da misericórdia» (n.10).
«Este é o tempo da misericórdia», repete de forma continuada o Santo Padre.
A misericórdia vive-se no agora, a misericórdia conjuga-se no presente. Por
isso... "misericordiemos"!