quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Do Jubileu Extraordinário ao Jubileu Ordinário da Misericórdia





Misericórdia e mísera (misericordia et misera)... assim começa a mais recente Carta Apostólica do Santo Padre na conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Naturalmente, a fecundidade deste Jubileu não se fecha nestas inspiradas e inspiradoras letras do nosso Papa, mas também não nos deixa sossegados na passividade de uma história eclesial que se limitou a viver mais um momento jubilar. No fundo, permanece a questão: e agora?!

O Papa lança o mote no n. 16 desta mesma carta: «Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia do nosso coração permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se inclina sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós possamos imitá-Lo inclinando-nos sobre os irmãos. A saudade que muitos sentem de regressar à casa do Pai, que aguarda a sua chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras e generosas da ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar, introduziu-nos no caminho da caridade, que somos chamados a percorrer todos os dias com fidelidade e alegria. É a estrada da misericórdia que torna possível encontrar tantos irmãos e irmãs que estendem a mão para que alguém a possa agarrar a fim de caminharem juntos». Efectivamente, a vontade do Santa padre é mesmo a de efectuar esta revolução pastoral: a afirmação da misericórdia como critério e como forma eclesial por excelência. No dinamismo da complexa vida eclesial, a misericórdia não pode permanecer como um mero apêndice ou decoração nas múltiplas actividades das nossas comunidades; ela deve ser o motor das próprias rotinas, singulares e comunitárias, na vida do cristão.

No fundo, o Papa quer que a Igreja respire misericórdia. O simbolismo da Porta Santa anuncia isto mesmo: que a Igreja, no seu todo, inale o odor da misericórdia divina, o deixe entrar em todas as dimensões da sua vida e não bloqueie o acesso a quem a procure. Por isso, mesmo que materialmente as «portas santas» sejam fechadas, a Porta da Misericórdia permanecerá aberta; mesmo que tenha chegado ao fim o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, perpetuar-se-à o Jubileu Ordinário da Misericórdia. A própria faculdade expandida a todos os sacerdotes na absolvição de certos pecados «reservados ao bispo» (neste caso, o aborto) manifesta este desejo de que as portas da misericórdia divina jamais se fechem para quem a quer receber de coração arrependido; como no caso da mulher adúltera, no cap. 8 do Evangelho de S. João, a «misericórdia triunfa sobre o juízo», a pessoa triunfa sobre a lei, o Espírito triunfa sobre a letra. Bendito seja Deus porque nos concedeu, mediante a intuição (inspirada) do Santo Padre, a possibilidade de renovar (e refundar) o nosso olhar misericordioso sobre tudo (e todos) o(s) que nos rodeia(m).

Convido-vos a ler na íntegra esta Carta profundamente programática. Como diz o Santo Padre, «o perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a sua vida» (n.2). O Papa Francisco adverte para um perigo: «a tentação de se limitar a fazer a "teoria da misericórdia" é superada na medida em que esta se faz vida diária de participação e partilha» (n.20). Por isso, no fim adverte para a urgência de uma verdadeira cultura da misericórdia, em que as obras da misericórdia ganham a densidade de uma «artesanalidade», pois «nenhuma delas é cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil modos e, embora seja único o Deus que as inspira e única a "matéria" de que são feitas, ou seja, a própria misericórdia, cada uma adquire uma forma distinta» (n.20). Não se confunde com filantropia, nem com meros sentimentos de comoção; é uma verdadeira comunhão com o olhar de Cristo sobre a humanidade, como tão bem testemunha o ícone deste Jubileu Extraordinário; porque é simultaneamente divina (enquanto dom) e humana (enquanto acção), «a cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na solidariedade concreta para com os pobres. É um convite premente para não se equivocar onde é determinante comprometer-se (n.20)».

Por isso, o Papa, em jeito de definição da essência da misericórdia que se exige a cada crente, define a mesma em vários vectores, que devem ser objecto do acolhimento e da práxis das comunidades:
  • A Misericórdia como celebração, em que mais do que um exercício parenético, se torna verdadeiramente realizadora (mediante a acção de Deus que santifica) e libertadora (na alegria de quem se sente acolhido, amado e perdoado);
  • A Misericórdia como consolação, manifestada sobretudo na solicitude e acompanhamento próximo às situações mais frágeis e dramáticas da vida humana (crises familiares, momentos de luto pela morte de alguém, etc.);
  • A Misericórdia como renovação e redenção, que tem a capacidade de regenerar aquilo que estava decaído, mediante o encontro de dois corações: «o de Deus e o do Homem. (...) Nisto se nota que somos verdadeiramente uma "nova criação" (Gal 6, 15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma vida nova; fui "misericordiado" e, consequentemente, feito instrumento da misericórdia» (n.16).
  • A Misericórdia como imaginação, nesta criatividade operante que encontra novas formas de expressão no mundo de hoje. Importa, a este ponto, (re)descobrir novas obras de misericórdia e (re)descobrir novos lugares onde a misericórdia possa ser vivida com horizontes renovados e onde a Igreja possa ser autenticamente a «túnica de Cristo» (n.10).
Aos padres lança igualmente um forte apelo: «peço-vos para serdes acolhedores com todos, testemunhas da ternura paterna não obstante a gravidade do pecado, solícitos em ajudar a refletir sobre o mal cometido, claros ao apresentar os princípios morais, disponíveis para acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando com paciência o seu passo, clarividentes no discernimento de cada um dos casos, generosos na concessão do perdão de Deus. Como Jesus, perante a adúltera, optou por permanecer em silêncio para a salvar da condenação à morte, assim também o sacerdote no confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que cada penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas ministro da misericórdia» (n.10).



«Este é o tempo da misericórdia», repete de forma continuada o Santo Padre. A misericórdia vive-se no agora, a misericórdia conjuga-se no presente. Por isso... "misericordiemos"!

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Carta a Diogneto: uma boa definição do ser cristão já no séc. II



“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem por sua terra, nem por sua língua, nem por seus costumes. Eles não moram em cidades separadas, nem falam línguas estranhas, nem têm qualquer modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, nem se deve ao talento e à especulação de homens curiosos; eles não professam, como outros, nenhum ensinamento humano. Pelo contrário: mesmo vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes de cada lugar quanto à roupa, ao alimento e a todo o resto, eles testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal.


Vivem na sua pátria, mas como se fossem forasteiros; participam de tudo como cristãos, e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é sua pátria, e cada pátria é para eles estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Compartilham a mesa, mas não o leito; vivem na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas, com a sua vida, superam todas as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, ainda assim, condenados; são assassinados, e, deste modo, recebem a vida; são pobres, mas enriquecem a muitos; carecem de tudo, mas têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, recebem a glória; são amaldiçoados, mas, depois, proclamados justos; são injuriados e, no entanto, bendizem; são maltratados e, apesar disso, prestam tributo; fazem o bem e são punidos como malfeitores; são condenados, mas se alegram como se recebessem a vida. Os judeus os combatem como estrangeiros; os gregos os perseguem; e quem os odeia não sabe dizer o motivo desse ódio.
Assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo; os cristãos, por todas as partes do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não pertencem ao mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são visíveis no mundo, mas a sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, mesmo não tendo recebido dela nenhuma ofensa, porque a alma a impede de gozar dos prazeres mundanos; embora não tenha recebido injustiça por parte dos cristãos, o mundo os odeia, porque eles se opõem aos seus prazeres desordenados. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; os cristãos também amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; os cristãos estão no mundo, como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em uma tenda mortal; os cristãos também habitam, como estrangeiros, em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada no comer e no beber, a alma se aprimora; também os cristãos, maltratados, se multiplicam mais a cada dia. Esta é a posição que Deus lhes determinou; e a eles não é lícito rejeitá-la”.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Ler e rezar com a Sagrada Escritura - texto de Santo Isidoro



A oração purifica-nos, a leitura instrui-nos. Pratiquemos uma e outra coisa, porque ambas são boas. Mas se isso não é possível, é melhor orar do que ler.
Quem deseja estar sempre com Deus, deve orar e ler frequentemente. Quando oramos, falamos nós com Deus; quando lemos, fala Deus connosco. 
Todo o nosso progresso vem da leitura e da meditação. O que ignoramos, aprendemo-lo com a leitura: o que aprendemos, conservamo-lo com a meditação. 

É dupla a vantagem que tiramos da leitura da Sagrada Escritura: ilumina-nos a inteligência e, subtraindo-nos às vaidades do mundo, leva-nos ao amor de Deus. 
Dupla deve ser também a preocupação com que devemos ler: primeiro, procurar compreender a Escritura; segundo, explicá-la para proveito do próximo com a devida dignidade. Naturalmente, só quem procura compreender o que leu estará apto para explicar o que aprendeu. 
O leitor diligente pensa mais em pôr em prática o que lê do que em adquirir a ciência. É menor desgraça desconhecer um ideal do que, tendo-o conhecido, não o atingir. Lemos para compreender o que é recto, e compreendemos para o pôr em prática. 
Ninguém pode descobrir o sentido da Escritura Sagrada se não a lê assiduamente, como está escrito: Tem-na em grande estima e ela te exaltará; se a recebes, ela será a tua glória. 
Quanto mais assíduos formos na leitura da palavra divina, tanto melhor a compreenderemos, como a terra que tanto mais frutifica quanto melhor é cultivada. 
Há alguns que têm boa inteligência; mas são negligentes em ler os textos sagrados; o seu desinteresse mostra o desprezo por aquilo que a leitura lhes poderia ensinar. Há outros, porém, que desejam saber, mas têm pouca inteligência. Estes, com uma leitura assídua, conseguem aprender aquilo que os mais inteligentes, pela sua preguiça, nunca aprenderão. 
Assim como o menos inteligente consegue, pela sua aplicação, recolher o fruto do seu estudo diligente, assim também aquele que menospreza a inteligência que Deus lhe deu, se torna réu de condenação, porque despreza um dom recebido e o deixa sem fruto. 
A doutrina que não é acompanhada pela graça de Deus, entra pelos ouvidos, mas não chega ao coração; faz ruído exteriormente, mas interiormente não aproveita ao espírito. A palavra divina só desce dos ouvidos ao mais íntimo do coração, quando a graça de Deus opera interiormente na alma.

sexta-feira, 4 de março de 2016

O nome de Deus é misericórdia


No Domingo passado, o III do tempo da Quaresma, escutámos uma leitura retirada do Livro do Êxodo, mais concretamente Ex 3, 1-15. É um texto fundante para a identidade de Israel, e também para nós cristãos, que nos colocamos na senda do legado judaico, enquanto Novo Israel. É um texto que começa a desenhar, na história da salvação, a crença num Deus Único (monoteísmo), que ainda no tempo de Moisés veremos ganhar contornos mais nítidos. 

Em muitas Bíblias, esta passagem costuma surgir com dois títulos, que evidenciam duas realidades: a vocação de Moisés e a revelação do «nome» de Deus. Ora, tendo escutado à pouco tempo o Papa Francisco a dizer que «o nome de Deus é Misericórdia», gostaria de fazer uma reflexão sobre este texto à luz desta premissa: a misericórdia diz quem é Deus e quem nós somos (revelação e missão/vocação).

Em primeiro lugar, a revelação de Deus, aqui neste texto, é, no fundo, uma «des-velação»: Deus simultaneamente diz e não diz. O tetragrama sagrado,  יְהוָ֞ה, diz apenas a imutabilidade de Deus: «Aquele que era, que é que será sempre». Deus não muda: o Seu olhar sobre nós é sempre o mesmo, independentemente das nossas imperfeições e pecados. E assim, Deus é misericórdia.

Deus é Aquele que não se deixa aprisionar num nome. Se em Gn, a concessão do nome garantia o domínio do ser humano sobre as demais criaturas, no livro do Êxodo Deus não permite que isso suceda. Deus está sempre para além de nós, como dizia Catherine von Spyer, e permanece sempre mistério inefável. Um dos grandes riscos da humanidade é tentar absolutizar este mistério, fechar Deus nos nossos esquemas, convicções, especialidades, enjaulando o desígnio divino na rigidez das formas, letras e regras.

Deus é Misericórdia porque é Aquele que está atento (vê, escuta, conhece, desce...). É uma misericórdia que actua, que não vive na passividade, e por isso aproxima-se e chama, e porque conhece, desce à nossa humana condição. Isso é misericórdia.

A misericórdia de Deus manifesta-se também na Sua paciência. O Senhor não dá nada como perdido, fazendo até o absurdo e o impossível para nos recuperar (na dignidade de pessoas, pelo menos). A parábola da figueira no-lo diz: Deus aguarda, pacientemente, a nossa conversão, e tudo fará para que isso aconteça. Até adubar o que não é adubável...!

Mas este excerto diz também um pouco de quem somos nós quando nos confrontamos com a misericórdia. E, personificados em Moisés, descobrimo-nos pessoas normais a quem, por misericórdia, Deus um dia chamou. Não somos melhores nem piores que os outros, somos iguais, embora diferentes. Já Jesus adverte, na premissa da parábola também escutada nesse domingo: «E se não vos converterdes, morrereis todos do mesmo modo...». Nós somos pessoas incapacitadas a quem Deus capacita e em quem Deus confia. Moisés, apesar de ser gago, foi escolhido para uma missão tão grande e tão importante para aquele povo. Deus compromete-Se connosco, projecta-Se em nós (a sua figueira); Ele não escolhe os capacitados, mas capacita aqueles que escolhe. E isso é misericórdia.

No entanto, a condição humana não deixa de ser assaltada pelo medo, pelo temor. Foi o sentimento de Moisés diante da sarça ardente. O medo de olhar para Deus é um sintoma dos nossos tempos, pois implica o conhecimento de nós mesmos, e isso implica a nossa morte: morrer para nós e viver para Deus. Mas só (re)descobrimos a misericórdia numa atitude de contemplação de Deus, pois no olhar Deus «olhos nos olhos» experimentamos a superabundância da graça sobre o pecado. No perdão de Deus caem as nossas sandálias, os passos mal andados são erradicados da nossas história, e somos restituídos a essa «nudez» original, sem máscaras, do Éden paradisíaco, da vida plena de comunhão com Deus.

É este o convite para o ano da Misericórdia. Que nos deixemos amar por Deus para podermos amar ao Seu jeito.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A sabedoria cristã


Ontem celebrámos um dos mais sábios santos do catolicismo, doutor da Igreja e padroeiro dos estudantes e professores de teologia. A sua sabedoria, reconhecida por toda a Cristandade, está compendiada nas suas múltiplas obras, de onde se destaca a clássica «Summa Theologica». Partilho convosco uma carta que S. Tomás escreveu a um estudante a propósito do estudo e da procura da verdade e da sabedoria cristãs, que não deixa igualmente de ser um ensinamento para cada um de nós:

«Tu me perguntaste de que modo é conveniente estudar para adquirir o tesouro da ciência; eis o meu conselho.
Não pretendas aventurar-te imediatamente em mar aberto, mas procura chegar através dos ribeiros: porque é necessário passar do fácil ao difícil. Este é o meu parecer, esta é a tua norma. Exorto-te a moderar a língua e a não frequentar certos ambientes. Mantém sempre pura a tua consciência; sê assíduo na oração; ama o recolhimento do teu quarto, se desejas participar no convívio da sabedoria. Mostra-te amável com todos; não te intrometas nos factos dos outros; não uses demasiada familiaridade com alguns, pois isso pode gerar distracção e distorção no estudo. Não te intrometas de forma alguma nos discursos e nos assuntos mundanos. Detém-te a contemplar os exemplos dos santos e dos bons. Conserva na memória tudo aquilo que escutas de bom, sem olhar para o relógio junto à pessoa que te fala. Procura compreender aquilo que lês e aquilo que ouves; tenta esclarecer as dúvidas; e esforça-te por que o estuda coloque o mais possível de coisas no caixão da mente, como se procurasses preencher um vaso. Não te interesses por questões que são demasiado elevadas para ti (Eccl 3, 22)».

Maravilhoso. Que possamos, com estes ensinamentos, atingir a meta a que aspiramos, de forma humilde e segura.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Para quê estudar?!


Tenho assistido com particular interesse algumas das novas mudanças parlamentares, nomeadamente no que toca à educação e à cultura (umas que aplaudo, outras nem tanto). Tenho visto igualmente com interesse (e algum sarcasmo) as reacções às decisões governamentais a este respeito. Gostaria aqui de reflectir uma que tocou num ponto ao qual sou bastante sensível: um senhor, cujo nome não divulgo, veio a público dizer que se não houver exames nos anos ditos 'menores' que os alunos não estudam. Fiquei perplexo... não se trata tanto da constatação de uma realidade, mas o que a sustenta: mas afinal o estudo serve para fazer exames?! Para prestar provas?!

Efectivamente, verifico esta realidade: os alunos (ou grande parte deles) andam na escola para passar (de ano)... outros para passar (o tempo)... alguns simplesmente para pass(e)ar...! Creio que todos somos culpados por esta situação. Este texto pretende ser apenas um alerta, para mim e para todos, sobre a forma como andamos a educar as crianças e os jovens.

Será que vale a pena investir num modelo de ensino de tipo 'autoclismo'? Ou seja: vale a pena estudar para depois (literalmente) despejar nos testes e nos exames, mas sem guardar na mente e no coração (sentido etimológico de «de cor») aquilo que se estudou e aprendeu? Será o conhecimento mero pro forma para cumprir a escolaridade obrigatória com os requisitos medianos (para não dizer mínimos)? Será que estamos a educar os nossos jovens para pensar verdadeiramente sobre as coisas, ou limitamo-nos a apresentar fórmulas concretas e objectivas que vão ser decoradas mas nem sempre compreendidas nem tão pouco reflectidas? E aqui apraz-me salientar, com tristeza, o desaparecimento da filosofia como disciplina obrigatória no ensino secundário... Será que o acesso a alguns cursos (e profissões) dependem apenas de uma média quantitativa, quiçá adulterada por outros factores, sem ter em conta a 'vocação', a personalidade e a humanidade dos candidatos?! Por isto pergunto: será que vale a pena estudar? 

Eu continuo a achar que sim, quando acima dos valores quantitativos estiverem os qualitativos (não os resultados mas o que se aprendeu), acima das ambições pessoais o bem comum da sociedade, acima das notas o conhecimento, acima do facilitismo a exigência, acima da mediania a perfeição. Só assim formaremos verdadeiros pensadores, autênticos filósofos (isto é, amigos da sabedoria), que usa o seu conhecimento para melhor pensar a realidade e colaborar para o progresso humano. É um caminho dificil, disso não tenho dúvidas, mas como dizia S. Tomás de Aquino a um estudante: «precisamos de passar do fácil ao difícil». Os grandes homens da história são recordados ainda hoje por terem sido capazes de ir «mais além».

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Mas afinal quem se salva?! Diz o Concílio...



Da Constituição Dogmática Lumen Gentium, Concílio Vaticano II

Em primeiro lugar, aquele povo a quem foram confiadas as alianças e as promessas e do qual nasceu Cristo segundo a carne, povo muito amado por Deus, em virtude da sua eleição e por causa dos Patriarcas e dos Profetas: porque os dons e os chamamentos de Deus são irrevogáveis.

Mas o desígnio de salvação abrange igualmente aqueles que reconhecem o Criador, entre os quais estão em particular os muçulmanos que, professando manter a fé de Abraão, adoram connosco um Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia.


Deus está perto também daqueles que buscam entre sombras e imagens o Deus desconhecido, porque a todos Ele dá a vida e a respiração e tudo o mais, e como Salvador quer que todos os homens sejam salvos.


Aqueles que ignoram sem culpa o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas buscam a Deus na sinceridade do coração e se esforçam, sob a acção da graça, por cumprir na vida a sua vontade, conhecida pelos ditames da consciência, também esses podem alcançar a salvação eterna. E a divina providência não nega os meios necessários para a salvação àqueles que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito de Deus, mas procuram, não sem a graça divina, viver rectamente.

De facto, tudo o que neles há de bom e de verdadeiro, considera-o a Igreja como preparação evangélica e dom d’Aquele que ilumina todo o homem, para que venha a ter finalmente a vida.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O Papa, ministro da misericórdia: uma reflexão sobre o que nos pode unir mas por enquanto ainda separa...


O ministério do Papa é uma questão incontornável e nuclear na concepção católica de Igreja. Mas nem sempre tem sido objecto de um cuidado debate teológico, e em vez de fomentar aquilo para o qual este ministério existe, ou seja, a comunhão da Igreja, acaba por criar cisões e divergências, como vemos na separação entre a Igreja Católica Romana e as Igrejas Ortodoxas e Reformadas. Como explicar esta situação? Que entendimento devemos nós, católicos, ter do Santo Padre?

Podemos ter como ponto de partida uma afirmação contida no Decreto Christus Dominus, do Concílio Vaticano II. Eis o texto:

«Nesta Igreja de Cristo, o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, a quem Cristo mandou que apascentasse as suas ovelhas e os seus cordeiros, está revestido, por instituição divina, de autoridade suprema, plena, imediata e universal, em ordem à cura das almas. Portanto, uma vez que foi enviado como pastor de todos os fiéis, para promover o bem comum da Igreja Universal e o bem de cada uma das Igrejas, tem a supremacia do poder ordinário sobre todas as Igrejas» (CD, 11).

            No parágrafo supracitado encontramos o cerne da questão. Convém frisar que o ministério papal, enquanto realização do ministério de Pedro, não é uma realidade que brota de uma vontade meramente humana, mas faz parte do projecto salvífico de Deus para a humanidade. É um serviço que se fundamenta no próprio querer de Deus, e cujos ecos vislumbramos de modo concreto nas palavras do próprio Jesus.

            Facilmente constatamos como Pedro tem um lugar de destaque no seio dos Doze. Algumas passagens do Novo Testamento, e em particular do Evangelho, parecem colocar Pedro como o primeiro dos Apóstolos: as listas são sempre iniciadas pelo seu nome; em Mt 16, 16-29 vemos Jesus a modificar o nome de Simão para Pedro, incumbindo-o de ser a rocha sob a qual se edificará a Igreja e de ter as chaves do Reino dos Céus que conferem a missão de fazer a ligação entre a terra e o Céu. Já post ressurrectionem, em Jo 21, 15-19, é-lhe pedido por Cristo Ressuscitado que apascente as Suas ovelhas, prolongando o mandato de Lc 22, 31ss de confirmar os seus irmãos na fé, «uma vez convertido». Como vemos através das palavras de Jesus e como deduzimos de outros episódios narrados, sobretudo a prontidão com que Pedro manifesta a fé em Jesus como Messias, antecipando-se ao restante grupo dos Doze (Mt 16, 16), e a menção de ter sido a primeira testemunha da Ressurreição (Lc 24, 34), é fácil perceber a relevância de Pedro no seio do grupo dos Apóstolos e posteriormente na primeira comunidade de Jerusalém.

            Mas ainda ficam questões por resolver: qual a relação entre o primado de Pedro e a primazia da Igreja de Roma na pessoa do seu Bispo? A Tradição da Igreja tem aqui um papel preponderante e de carácter normativo, com uma evolução histórica que acentua este carácter primacial de Pedro e de Roma sobre os restantes Apóstolos e Igrejas, respectivamente. Perante as inúmeras discussões e opiniões acerca desta temática, muitas delas de teor oposicionista à doutrina católica, o Concílio Vaticano I (1870) sublinhou o carácter irredutível deste aspecto doutrinal, com consequências práticas na dogmatização da Infalibilidade do Papa ao nível da fé e dos costumes, enquanto legítimo sucessor de Pedro e “presidente” da Igreja Católica.

            Não há que ter medo de o assumir: o ministério do Papa conserva o ministério do apóstolo Pedro, mesmo que algumas circunstâncias históricas possam ter desfigurado esta realidade. Não se trata de absolutizar o poder pontifício numa dimensão de autoridade monologal e fechada ao restante Colégio Apostólico, mas antes reconhecer na figura do Papa o servus servorum Dei, como tão bem expressou S. Gregório Magno. Ele é o primeiro a testemunhar e a manter a especificidade da Igreja na sua dupla acção: comunhão e missão. Por isso, como nos aponta João Paulo II na sua encíclica Ut unum sint, o Bispo de Roma foi constituído por Deus como «perpétuo e visível fundamento da unidade» (UUS 88). A essência deste ministério reside fundamentalmente neste serviço à unidade da Igreja, a «communio ecclesiarum», pelo que falar do ministério de Pedro implica falar da acção da Igreja. Tudo o que podemos afirmar acerca do múnus papal deriva não dos atributos pessoais do sucessor de Pedro, mas da certeza da assistência do Espírito Santo à Igreja, que permite a continuidade da acção de Jesus na história.

            O lugar atribuído a Pedro está, por isso, fundado sobre as próprias palavras de Cristo, tal como são recordadas nas tradições evangélicas. Ao frisar a necessidade de uma conversão para poder confirmar os irmãos na fé, Jesus põe em evidência a fraqueza humana de Pedro. É por isso que só podemos entender o serviço petrino no horizonte mais amplo da Igreja, que está assente no poder infinito da graça. Deste modo, se o Papa é infalível, isso decorre da própria infalibilidade da Igreja; se o Papa é solícito por todas as Igrejas, essa realidade advém da solicitude da Igreja por todas as Igrejas particulares. O Papa nunca age em nome próprio, mas em prol da execução da missão da Igreja enquanto sacramento universal de salvação. Ainda no número 94 da Ut unum sint se diz que «o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos próprios interesses. Tem o dever de advertir, presumir e, por vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda – em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio Vaticano I – declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé. Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve a unidade.» (UUS 94). O Bispo de Roma é, assim, a expressão visível da plena comunhão da Igreja, enquanto cabeça do Colégio Apostólico com quem forma uma unidade. Assim, em cada uma das Igrejas particulares confiadas aos Bispos realiza-se a Igreja una, santa, católica e apostólica. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro e, desse modo, na unidade de Cristo.

            Por fim, o Papa é o “Vigário de Cristo”, ou seja, é aquele que faz as vezes de Cristo. Mais uma vez, esta é uma realidade que brota do próprio mistério da Igreja enquanto presença da plenitude dos instrumentos de salvação, em que a acção da Igreja é sempre acção de Cristo. O serviço petrino é o serviço de Cristo, consubstanciado na passagem lucana «Eu estou no meio de vós como quem serve» (Lc 22, 27). É igualmente um serviço à misericórdia, que radica na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da sua fraqueza e miséria. Parafraseando, mais uma vez, João Paulo II, «a autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do desígnio misericordioso de Deus e há-de ser vista sempre nesta perspectiva. É que nela se explica o seu poder.» (UUS 92). 

O ano da misericórdia (também) na cultura: sabor a Caravaggio


Sou um apaixonado pela arte pictórica de Caravaggio, autor italiano dos finais do século XVI e princípios do século XVII. Procuro, no tempo que a minha disciplina pessoal permite, ir cruzando o meu olhar e o meu coração com as obras de arte deste autor aqui em Roma, e que são ainda algumas. Mas num ano em que celebramos o Jubileu da Misericórdia, partilho aqui convosco uma pintura que tive a graça de contemplar na cidade de Nápoles, mais concretamente na igreja do Pio Monte della Misericordia. Esta obra, realizada no princípio do século XVII, tem como título «As sete obras de misericórdia», e espanta pela capacidade do autor em concentrar, numa única cena, aparentemente ligada à vida napolitana, a representação das sete obras de misericórdia espirituais. 

As sete obras de misericórdia neste quadro de Caravaggio identificam-se da seguinte forma:

  1. «Sepultar os Mortos»: está representada à direita, em que se observa um cadáver a ser transportado (somente os pés se vislumbram), um diácono que traz consigo um archote e um 'transportador' do defunto;
  2. «Visitar os presos» e «dar de comer a quem tem fome» vem representada nas mesmas personagens e num mesmo episódio: aquele de Cimone, no romance de Valerio Massimo (séc. I d.C.), em que este, condenado à morte através da fome, nutriu-se do seio da sua filha, Pero, e por isso agraciado pelos magistrados com um templo ali erecto dedicado à Deusa Piedade (onde mais tarde viria a ser construída a Basílica de S. Nicolau no Cárcere);
  3. «Vestir os nus»: aparece na parte esquerda, concentrada na figura de um jovem cavaleiro, provavelmente S. Martinho de Tours, e que oferece o seu manto a um homem visto de costas e que aparece desnudado; ao mesmo santo está ligada a figura de um aleijado, em baixo, num ângulo mais à esquerda, que evoca um episódio relacionado com a vida de S. Martinho, e aqui associado à obra «Cuidar dos enfermos»;
  4. «Dar de beber a quem tem sede» está representada por um homem que bebe de uma mandíbula de burro, provavelmente Sansão, que no deserto bebe água surgida miraculosamente por parte de Deus;
  5.  «Hospedar os peregrinos» está bem definida por duas figuras: um homem em pé, na extrema esquerda do quadro, que aponta para um qualquer lugar exterior, e um outro que, devido ao uso de uma concha no chapéu (símbolo do Caminho de Santiago de Compostela), se identifica facilmente como sendo um peregrino.

O Papa Francisco diz que o nome de Deus é misericórdia. Que procuremos, também, contemplar o rosto do Deus Misericórdia na revelação que faz de Si nas obras de arte, como Caravaggio tão bem soube manifestar.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

«A mística do instante»

Em Novembro de 2015, Portugal teve a graça de poder ver condecorado com um prémio internacional (um prémio literário concedido pela instituição Res Magnae, de Roma) um dos mais conceituados escritores contemporâneos do momento no panorama nacional: o Padre José Tolentino Mendonça. Este reconhecimento internacional viria a ser igualmente seguido pelo reconhecimento nacional por parte do nosso (ainda) actual Presidente da República.

Se o Padre Tolentino já me havia entusiasmado enquanto professor (foi meu professor de Evangelhos Sinópticos e Escritos Paulinos), a minha participação na entrega do prémio, aqui em Roma, suscitou-me o interesse pelas suas obras literárias. E comecei exactamente pelo livro galardoado: «A mística do instante: o tempo e a promessa».

Atrai-me sobretudo a beleza com que Tolentino «tece» as suas frases: a leveza com que flui cada palavra, a ampla semântica que confere a cada expressão, a sábia arquitectura de cada linha de pensamento. O Padre Tolentino não pretende (desculpem a ousadia) deixar uma ideia geral, mas várias linhas de pensamento, sem grande rigidez formal ou pretensões de manual. É um pensador livre que pretende dar vida ao texto através do Espírito que o fundamenta.

Mas este livro tocou-me sobretudo em alguns pontos que julgo serem importantes no olhar da fé e na visão do tempo (e do espaço), como o título tão bem ilustra. Desde logo, vem-me à memória a famosa frase do teólogo alemão Karl Rahner: «O cristão do futuro ou será místico ou não será cristão». Ora, o que me espanta neste livro é o modo como parágrafo após parágrafo, sustentado por uma teologia dos sentidos (no fundo, recuperando ou aplicando a própria teologia da Encarnação), o autor é capaz de desconstruir a ideia vulgar do místico como aquele que supera a dimensão puramente natural para se enquadrar na lógica do sobrenatural mas numa perspectiva 'desencarnada' da realidade humana, o seu verdadeiro habitat.

Ora, ninguém é cristão fora do tempo e fora do espaço. O místico não é aquele que foge do tempo, ou que o supera, mas que não se detém na cronologia dos minutos e dos segundos, antes aproveita cada instante como oportunidade salvífica, como possibilidade epifânica (ou teofânica). No fundo, é a superação do Chronos e o advento do Kairós. O místico não é aquele que desvaloriza a dimensão corporal da revelação e vive como um «espírito desencarnado», numa perpétua contemplação das realidades últimas que, a ser vivida, dispensaria a fé (algo que, diversamente, procuram os Budistas com o Nirvana ou os hinduístas com a superação do Karma). Por isso, este livro convida os leitores a abrir os sentidos para a contemplação de Deus... a ver na realidade criada (material, sensorial, mas insuflada pelo espírito divino) a mediação do próprio Criador que vem ao nosso encontro. Mostra como a activação dos sentidos é um verdadeiro mapa que nos conduz à experiência divina, e que define a própria sacramentalidade do criado enquanto epifania de Deus. 

Ou não será o paladar do que é saboroso (por exemplo, o corpo e sangue de Jesus), o tactear do que é verdadeiro (o abraço de um amigo ou as bolhas numa peregrinação), o olhar do que é belo (a natureza, um pôr-do-sol), a audição do que é bom (um belo concerto) e o odor do que agradável (um perfume, o incenso) também experiências de Deus na nossa vida? Não quis a sabedoria eclesial que o momento máximo de encontro entre o divino e o humano (a liturgia, de modo concreto a eucaristia) colocasse em órbita todos os sentidos, para que fortalecesse o Homem na sua totalidade de corpo, alma e espírito? Que também nós saibamos viver nesta «mística do instante» de quem se deixa surpreender sempre pela imprevisibilidade de Deus, pois como dizia Santa Teresa de Ávila às irmãs carmelitas: «Deus também está nas caçarolas». Ou seja, nas realidades mais humanas... nos sentidos e através dos sentidos!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Eu não sou Charlie!

Faz hoje um ano que o mundo ficou chocado com mais um acto de terrorismo perpetrado por dois 'muçulmanos' ligados à Al-Qaeda (pelo menos reivindicados como tal) e que teve como alvo os funcionários do famoso semanário satírico francês «Charlie Hebdo». Muitos cidadãos de todo o mundo se uniram por uma onde de solidariedade, muitas vezes pouco reflectida, a favor da «liberdade de expressão» e dos valores da democracia e da república! 

Mesmo condenando os actos (não os autores), não pactuei com essas opiniões em larga escala, movida mais pelo contágio da conunicação social do que pela razão e pelo coração. E continuo a não corroborar dessa ideia. Na minha óptica, só o amor não tem limites... pelo que a liberdade assim entendida (não no sentido cristão do termo) também tem limites! Por isso, «Eu não sou Charlie», pois mesmo não concordando com a forma que alguns radicais islâmicos encontraram para manifestar desacordo face ao que ali era publicado, não pactuo com o conteúdo ali satiririzado. A «liberdade de expressão» só pode ser verdadeira e autêntica quando a mesma não gera discriminação em relação aos cidadãos... o que não é o caso! Pois no Charlie Hebdo, educação, respeito e tolerância não existem, ridicularizando sistematicamente todas as pessoas que possuem convicções religiosas e o próprio conteúdo do que se acredita, neste caso uma Pessoa: Deus.

Mas se para uns a forma de combater a livre expressão de um pincel é o recurso às armas, para nós a arma é outra: misericórdia e oração. 

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Os Magos: uma estrela para 2016

Mt 2, 1-12 
Tinha Jesus nascido em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes, quando chegaram a Jerusalém uns Magos vindos do Oriente. «Onde está – perguntaram eles – o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-l’O». Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes ficou perturbado e, com ele, toda a cidade de Jerusalém. Reuniu todos os príncipes dos sacerdotes e escribas do povo e perguntou-lhes onde devia nascer o Messias. Eles responderam: «Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo Profeta 1: ‘Tu, Belém, terra de Judá, não és de modo nenhum a menor entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe, que será o Pastor de Israel, meu povo’». Então Herodes mandou chamar secretamente os Magos e pediu-lhes informações precisas sobre o tempo em que lhes tinha aparecido a estrela. Depois enviou-os a Belém e disse-lhes: «Ide informar-vos cuidadosamente acerca do Menino; e, quando O encontrardes, avisai-me, para que também eu vá adorá-l’O». Ouvido o rei, puseram-se a caminho 2. E eis que a estrela que tinham visto no Oriente seguia à sua frente e parou sobre o lugar onde estava o Menino. Ao ver a estrela, sentiram grande alegria. Entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O 3. Depois, abrindo os seus tesouros, ofereceram-Lhe presentes: ouro, incenso e mirra 4. E, avisados em sonhos para não voltarem à presença de Herodes, regressaram à sua terra por outro caminho 5


A narrativa dos Magos que escutamos na solenidade da Epifania do Senhor (no Domingo passado em Portugal, hoje - dia 6 de Janeiro - noutros países, como Itália ou Espanha) é sempre desconcertante pela sua riqueza inesgotável. Não quero fixar-me no puro enredo ou na veracidade histórica tantas vezes questionada por historiadores e exegetas, nem tão pouco na fertilidade da imaginação humana que não deixou de fantasiar estas personagens conferindo-lhes estatuto social (reis), número (3), nomes (Gaspar, Baltasar e Belchior) e até cor (representativa de cada continente), aspectos omitidos no relato evangélico. Mas este ano deixei-me conduzir por cinco desafios lançados pelo texto, que mais não são do que cinco notas características da fé e que convido a acolher como interpelação para este ano de 2016 (ano da misericórdia):

1) A fé como exigência e interpretação dos sinais: levar a sério a Palavra de Deus e os sinais divinos na história, analisando tudo com profundidade e procurando acolher a revelação divina como dirigida a cada um de nós, no conhecimento e estudo da Sua Palavra (Escritura e Tradição), a fim de não estagnar no processo de fé mas antes buscar incessantemente a Verdade;

2) A fé como viagem: viver cada etapa como uma peregrinação, um caminho. Nunca estamos totalmente realizados, o caminho da perfeição é longo e duro, e isso exige cristãos abnegados que não desistam facilmente da meta a que se propõem alcançar e não vacilem diante das primeiras contrariedades. Há que caminhar sempre, pois Deus deseja construir-nos e reconstruir-nos também no nosso caminho interior;

3) A fé como «porta»: neste ano da misericórdia, somos convidados a não permanecer fora, mas a entrar no habitat de Deus, ou seja, na simplicidade que o próprio presépio representa. Como os Magos, o nosso foco deve estar no essencial, Jesus, e os nossos passos, bem como o nosso olhar, devem abstrair-se do acessório para se dirigirem ao chamamento primeiro de cada cristão: a adoração de Deus;

4) A fé como generosidade / dom: sabemos que a nossa condição de carência nos coloca numa atitude permanente de mendicidade diante de Deus. Mas a fé, enquanto dom acolhido, só pode ser entendida na óptica do dom recebido e partilhado. Hoje os Magos convidam-nos também a entregar generosamente a Deus o que Ele verdadeiramente deseja: em vez de ouro, o nosso coração («Onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração»); em vez de incenso, a nossa oração; em vez de mirra, os nossos pecados (sinal da nossa fragilidade e humanidade);

5) A fé como mudança de rumo: a fé só será autêntica quando culminar numa atitude de conversão de coração e de vida, não devido a uma norma acreditada e cumprida sem mais, mas porque provocada pela encontro vital com Cristo; não um mero mudar de lugares e ambientes, mas uma transformação de olhar e perspectivas.

Assim Deus nos ajude a viver sempre desta forma os desafios incessantemente colocados pela Sua Palavra epifânica.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Para quem tem um verdadeiro amigo... (um hino à amizade)

Dos Sermões de São Gregório de Nazianzo, bispo
(Oratio 43, in laudem Basilii Magni, 15,16-17.19-21: PG 36,514-523)           
(Séc. IV)

Como uma só alma em dois corpos

(...) Este foi o prelúdio de nossa amizade, a centelha que fez surgir a nossa intimidade; assim fomos tocados pelo amor mútuo.
Com o passar do tempo, confessámos um ao outro o nosso desejo: a filosofia era o que almejávamos. Desde então éramos tudo um para o outro; morávamos juntos, fazíamos as refeições à mesma mesa, estávamos sempre de acordo, aspirando aos mesmos ideais e cultivando cada dia mais estreita e firmemente a nossa amizade.
Movia-nos o igual desejo de obter o que há de mais invejável: a ciência. No entanto, não tínhamos inveja um do outro. Ambos lutávamos, não para ver quem tirava o primeiro lugar, mas para cedê-lo ao outro. Cada um considerava como própria a glória do outro.
Parecia que tínhamos uma só alma em dois corpos. E embora não se deva dar crédito àqueles que dizem que tudo se encontra em todas as coisas, ao nosso caso podia-se afirmar que de fato cada um se encontrava no outro e com o outro.
A única tarefa e objetivo de ambos era alcançar a virtude e viver para as esperanças futuras, de tal forma que, mesmo antes de partirmos desta vida, tivéssemos emigrado dela. Nesta perspectiva, organizámos toda a nossa vida e maneira de agir. Deixámo-nos conduzir pelos mandamentos divinos estimulando-nos mutuamente à prática da virtude. E, se não parecer presunção minha dizê-lo, éramos um para o outro regra e modelo para discernir o certo e o errado.
Assim como cada pessoa tem um sobrenome recebido de seus pais ou adquirido de si próprio, isto é, por causa da atividade ou orientação de sua vida, para nós a maior atividade e o maior nome era sermos realmente cristãos e como tal reconhecidos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Entre o acontecimento e o sentimento: conservar 2015 no coração

O Evangelho proclamado quer na festa da Sagrada Família quer da solenidade de Santa Maria Mãe de Deus dizia que Maria conservava todos os acontecimentos no seu coração... Embalado por esta atitude mariana, procurei fazer deste tempo síntese e uma perspectiva do ano 2015 da graça do Senhor.

É sempre dificil para mim fazer este flash-back do ano... traz memórias, nostalgias, saudades que o tempo já não pode segurar e a memória pode perder! As fotos permitem ver mas não sentir, os relatos permitem ler mas não experimentar. Este é sempre o drama que vivemos em relação á nossa história. Por isso, neste exercício mental que faço, de coração agradecido, recupero, memorialmente, os acontecimentos que mais não foram que instrumentos de suporte para as experiências felizes que Deus permitiu viver... e que se tornaram sentimentos, enquanto «Palavra» dita, escrita e gravada no coração.

Hoje, recordo com gratidão os momentos fortes de encontro com Deus...
  • nas peregrinações a Fátima;
  • na peregrinação de Ávila a Alba de Tormes;
  • na peregrinação a Itália;
  • no Tríduo Pascal 2015;
  • etc.

Hoje, recordo com gratidão os momentos fortes de encontro com Deus, em Igreja...
  • no passeio de adolescentes à Lousã;
  • no dom da vida celebrado e partilhado com as famílias que Deus me deu;
  • na Festa da Família;
  • no passeio de catequese a Fátima e Pia de Urso;
  • nas férias com Jesus;
  • no Campo Apostólico;
  • na 1ª audiência Papal com o Papa Francisco;
  • no Colégio Português em Roma;
  • na abertura do Ano Jubilar da Misericórdia;
  • etc.
Hoje, recordo com gratidão os momentos fortes de encontro com Deus, na cultura...
  • visitando o Porto;
  • visitando Castro Daire;
  • visitando Paris;
  • cumprindo o sonho de criança (Disney);
  • organizando eventos nas paróquias.

Com certeza revivo todos estes acontecimentos com alegria e com acção de graças; mas guardo, sobretudo, no meu coração: cada eucaristia celebrada, cada penitente absolvido, cada doente amparado e curado, cada vida convertida, cada marginal recuperado, cada matrimónio abençoado, cada criança baptizada, cada família reunida, cada amizade ampliada e conquistada, cada palavra hebraica decorada, cada declinação grega compreendida... 

Guardo e medito em meu coração estes acontecimentos e respectivos sentimentos... que em 2016 continue a ser capaz de acolher as bênçãos que Deus quer derramar como instrumento da Sua misericórdia.