domingo, 25 de fevereiro de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo II da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)


(Transfiguração, da autoria de Rafael - Museus do Vaticano)

A Transfiguração do Senhor tem um lugar central na liturgia do Domingo II da Quaresma. A história da salvação, que muitos afirmam começar em Abraão, protagonista da primeira leitura, encontra em Cristo a sua plenitude. Aparecendo ao lado de Moisés e Elias no cimo do monte, o evangelista procura apontar Jesus como aquele que é superior à Lei e aos profetas que cada um daqueles representa, não numa ótica de rutura mas de clara continuidade e permanente diálogo. Mas essa perceção surgirá apenas quando Jesus ressuscitar dos mortos, como o próprio antecipa no final do evangelho. Só no mistério pascal de Cristo surge iluminado o verdadeiro alcance quer do sacrifício de Abraão, quer da transfiguração do Senhor como desvelamento antecipatório da identidade divina de Jesus. É esse caminho de reconhecimento e de busca que a Palavra nos incita a percorrer, sem permanecermos imóveis e acampados em qualquer «Tabor» do nosso mundo.
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Fides ex auditu - ‘a fé nasce da escuta’. Por detrás de uma adesão à fé está a escuta de uma Palavra que se afigura como credível e, em tantos, transformadora. Provavelmente na Sagrada Escritura, o verbo escutar é dos mais utilizados, e muitos deles em forma imperativa. O «Shemá Israel» (Escuta, Israel) tornou-se a oração de profissão de fé por excelência do Povo de Israel, sabido de cor e meditado vezes sem fim pelos crentes. Mas na sua raíz etimológica hebraica, ouvir/escutar não são apenas atos sensíveis e tantas vezes mecânicos; a escuta, na vida da fé, deve significar ‘obediência’. É por isso que esta liturgia de hoje, em que a escuta ocupa um lugar primordial, apresenta o caso de Abraão. Por três vezes, o pai de todos os crentes obedece à voz do Alto, mesmo que o conteúdo do pedido fosse carregado de incerteza, ambiguidade e até alguma aparente desumanidade. A voz de Deus surge sempre como pedagogo de um caminho de liberdade humana: em Abraão, ensinando a olhar o filho (ou, em sentido mais amplo, qualquer relação privilegiada com o que de melhor se possui) na medida justa como dom de Deus, sem quaisquer disposições possessivas e reivindicativas; nos três discípulos a quem Jesus se manifesta (Pedro, Tiago e João), a não se ficarem pela espectacularidade do acontecimento testemunhado, limitados ao exterior, mas sobretudo a tomarem a sério tudo aquilo que sai da boca de Jesus como palavra salvífica e transfiguradora.
Por isso, esta voz que se faz sentir, não só nestes textos mas em toda a vida da Igreja, é uma voz qualificada, que não deve paralisar as ações mas antes promover um caminho a ser percorrido. A Igreja não deve ceder à tentação de acampar no «Tabor» dos seus sacramentos e liturgias, de forma estática e fria; o verdadeiro «Tabor» é aquele que não só facilita a ‘transfiguração’ sacramental de Jesus na Eucaristia (e demais sacramentos) como também impele a «descer do monte» e a encarar (para a transfigurar cristicamente) a realidade humana tal como é, não já com o olhar cético de quem duvida  mas com o horizonte de esperança que o coração transfigurado pela palavra de Jesus permite a cada cristão. Quando isso acontecer, perceberemos que não caminhamos sozinhos, mas nos acompanha a «nuvem» com a sua sombra (a Shekinah que guiava o Povo de Israel no caminho do Êxodo), que se fez manifestar no monte como sinal visível e audível da presença divina. E deste modo, a ‘descida do monte’ será feita sem receios de qualquer fracasso, mas na certeza de que «se Deus está por nós, quem estará contra nós?».

domingo, 18 de fevereiro de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo I da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)



No 1º Domingo da Quaresma, a Igreja propõe como leitura evangélica o episódio das tentações. Se nos anos A e C, com os evangelistas Mateus e Lucas, respectivamente, este episódio surge mais desenvolvido, o Evangelho de Marcos, reconhecidamente mais sintético, apenas faz eco deste ‘retiro’ de Jesus para o deserto e as tentações a que esteve sujeito. Naturalmente que esta ‘retirada’, unida às tentações, não deixa de constituir uma evocação quer do livro do Génesis (ambiente paradisíaco onde se desenvolve a trama) quer do livro do Êxodo (o deserto como lugar da prova mas também da superação). No fundo, Marcos está a afirmar, logo no início da Sua vida pública, que Jesus vem para operar uma «nova criação» e empreender «um novo êxodo», convidando cada crente a realizar o mesmo percurso nesta Quaresma que conduz à Páscoa.
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Marcos dá particular destaque aos exorcismos que Jesus efectua, dando claro ênfase ao que se considera ser uma luta permanente entre o bem e o mal. Ao fazer preceder a Sua vida pública num ambiente de deserto e a ser tentado por Satanás, o evangelista confere credibilidade ao que se segue posteriormente, mostrando que por detrás da força salvífica de Cristo está uma ‘vitória’ precedente sobre as tentações demoníacas.
Mas a colocação das tentações neste contexto não é ingénua; ela situa-se imediatamente após o batismo de Jesus. Marcos pretende veicular que o percurso de Jesus é o percurso de qualquer batizado. A forma paradoxal como inicia este episódio («o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto») manifesta não só a permissão mas a vontade divina neste itinerário: a solidariedade de Jesus para com a humanidade traduz-se igualmente na Sua sujeição às tentações e na capacidade de as vencer, não só naquele momento mas em toda a vida. Se no caminho exodal surgem as Tábuas da Lei como código ético de salvaguarda da fidelidade à aliança, Jesus é a ‘Encarnação’ plena dessa fidelidade. Este excerto reporta, por isso, a uma outra passagem, que, no original hebraico que a passagem cita, pode ser entendida como «Uma voz clama: “No deserto, preparai o caminho do Senhor”» (Mc 1,2). Não se trata só de considerar João Batista como essa voz que clama (no deserto), mas de considerar Jesus Cristo como Aquele que prepara (no deserto) o caminho do Senhor. O discipulado cristão, concretizado no seguimento do caminho de Jesus, começa aqui a ser delineado. O batismo não garante facilidades nem nos deixa imunes à prova, e as tentações de Jesus são as tentações da Sua vida inteira e da vida humana em geral. No fundo, é a tentação (original) de Adão, cujo cenário paradisíaco é aqui evocado: a convivência com os animais selvagens e com os anjos. Este cenário pode representar uma dupla possibilidade: simbolizar a comunhão vivida no Éden, apelando a uma «nova criação» e a uma nova era na história da salvação que Jesus inaugura (sentido que Marcos parece dar); ou por outro lado manifestar esta coabitação, nem sempre fácil, entre a aparente hostilidade da vida terrena (animais selvagens) a par com a vida divina que nela se manifesta (anjos).
Deste modo, e em sintonia com a primeira leitura, que evoca a aliança estabelecida depois do dilúvio, o Evangelho chama-nos a reconhecer um novo início da história da salvação. Mas ao mesmo tempo Marcos reporta-se ao passado para que a salvação seja repensada como uma relação de amor, e não só meramente institucional. É uma aliança dinâmica que coloca cada um de nós num ‘caminho’, numa estrada que Jesus abre no deserto e que cada crente deve descobrir. E este episódio permite antever como os ‘caminhos’ de Deus nem sempre são óbvios: são imprevistos e paradoxais. Porém, ao mostrar como as ‘vias’ de Deus não são as ‘vias’ dos homens, reiteram igualmente que os paradoxos mais não servem do que apelar a uma superação das nossas representações de Deus e dos Seus desígnios. E assim cada leitor é pro-vocado a decidir-se por Deus e pela Sua vontade, pela Sua estrada.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Proposta de leitura bíblica para a Quaresma



Quaresma
Quarta-feira de cinzas
Êxodo 19-22
Quinta-feira
Êxodo 23-25
Sexta-feira
Êxodo 26-28
Sábado
Êxodo 29-31

1º Domingo da Quaresma
Êxodo 32-34
Segunda-feira
Êxodo 35-37
Terça feira
Êxodo 38-40
Quarta-feira
Números 1-4
Quinta-feira
Números 5-8
Sexta-feira
Números 9-12
Sábado
Números 13-15


2º Domingo da Quaresma
Números 16-18
Segunda-feira
Números 19-21
Terça feira
Números 22-25
Quarta-feira
Números 26-29
Quinta-feira
Números 30-32
Sexta-feira
Números 33-36
Sábado
Deuteronómio 1-3


3º Domingo da Quaresma
Deuteronómio 4-6
Segunda-feira
Deuteronómio 7-10
Terça feira
Deuteronómio 11-14
Quarta-feira
Deuteronómio 15-18
Quinta-feira
Deuteronómio 19-22
Sexta-feira
Deuteronómio 23-26
Sábado
Deuteronómio 27-29


4º Domingo da Quaresma
Deuteronómio 30-32
Segunda-feira
Deuteronómio 33-34
(continua do 8 de fevereiro)
Terça feira
Jeremias 25-26
Quarta-feira
Jeremias 27-28
Quinta-feira
Jeremias 29-30
Sexta-feira
Jeremias 31
Sábado
Jeremias 32


5º Domingo da Quaresma
Jeremias 33-34
Segunda-feira
Jeremias 35-37
Terça feira
Jeremias 38-40
Quarta-feira
Jeremias 41-43
Quinta-feira
Jeremias 44-46
Sexta-feira
Jeremias 47-48
Sábado
Jeremias 49



Semana Santa
Domingo de Ramos
Jeremias 50
Segunda-feira
Jeremias 51
Terça-feira
Jeremias 52
Quarta-feira
Lamentações 1
Quinta-feira
Lamentações 2
Sexta-feira
Lamentações 3
Sábado
Lamentações 4-5

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra de Quarta-feira de Cinzas (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)



Com a celebração de Quarta-feira de Cinzas a Igreja dá início ao sagrado tempo da Quaresma. Durante este tempo litúrgico, ao mesmo tempo que celebra e acompanha os ritos catecumenais de preparação para o batismo, a Igreja propõe um caminho não só de preparação (para a Páscoa) mas de profunda e sincera conversão (para a vida). Assim como o deserto foi o lugar da prova, mas também da revelação do poder de Deus quer para Jesus (durante 40 dias) quer para o Povo hebreu a caminho da Terra Prometida (durante 40 anos), também agora cada um de nós é desafiado a reconhecer a fragilidade humana e a procurar a medicina curativa da graça divina na Sua misericórdia ao longo destes 40 dias quaresmais. Esta simbiose perfeita culmina na conversão de coração e tem na esmola, oração e jejum (no jeito proposto por S. Mateus) as suas ferramentas mais eficazes. A isso nos convida Jesus no Seu Evangelho como caminho de configuração mais plena à vontade do Pai.
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Uma das máximas que poderíamos aplicar ao que Jesus considera como verdadeiro espírito religioso seria: ‘não interessa tanto o que fazemos, mas o amor com que fazemos’. Esta premissa tem uma relevância ainda maior neste tempo da Quaresma, em que tantos crentes parecem medir a sua competência religiosa através de um certo farisaísmo apoiada no que se faz e não no sentido do que se faz. É para este perigo que Jesus adverte no Evangelho de início de tempo quaresmal e que já o profeta Joel denunciava, pedindo uma conversão sincera do coração (interior) e não só aparente (rasgar os vestidos).
A Igreja, acolhendo o ensinamento de Jesus aos Seus discípulos, propõe um itinerário de conversão apoiado em três modalidades: a esmola, a oração e o jejum. No fundo, Jesus não propõe nada de novo na forma, mas sim no conteúdo e no sentido religioso. O Senhor não procura, de modo algum, negar o valor humano e espiritual dos três, antes lhes confere o horizonte da gratuidade e discrição próprio de quem privilegia o ser em detrimento do parecer.
A esmola, mais do que um acto mecânico de despejar moedas para manter uma consciência ‘tranquila’, deve sintonizar cada um com o amor genuíno ao próximo. Dar esmola deve implicar sempre um ‘dar-se como esmola’, ou seja, oferecer-se gratuitamente por quem mais necessita do nosso auxílio, não só económico como humano e espiritual. Isso faz-se sem procura de visibilidade e reconhecimento, mas com a genuinidade de quem ‘ama porque ama’, dando sem esperar receber nada em troca, o que a renúncia quaresmal traduz muito bem, visto ser canalizado para rostos muitos deles anónimos e desconhecidos.
A oração proposta por Jesus sintoniza-nos, por seu turno, numa sincera e fecunda relação com Deus. Este forma de oração agradável a Deus não pode ser entendida como mera reprodução mecânica de rotinas, devoções e gestos piedosos, que, devido à hipocrisia com que são feitas, mascaram a falta de gratuidade que a deve pautar. O Evangelho desafia-nos a uma oração ‘inútil’, isto é, que não procura ser útil para quem a faz nem procura ser título de vanglória pessoal para os que contemplam aquele que reza. A oração deve ser um lugar de encontro de duas vontades, sem qualquer espécie de ‘relacionamento comercial’ ou ‘prestação de serviços’ de carcácter instrumental. Qualquer modalidade de oração que não se oriente em função da gratuidade não entra na lógica do Evangelho e é repudiada por Deus.
Por fim, o jejum é uma bússola que nos sintoniza numa relação correcta connosco próprios: com os nossos desejos, vontades, impulsos. O jejum não se define apenas na renúncia aos alimentos, mas numa fuga a tudo aquilo que pode alienar o ser humano e deformar a sua imagem e semelhança de Deus. Neste sentido, o horizonte espiritual do jejum é o progresso no auto-domínio diante de realidades negativas, como o pecado. Exercitando o (verdadeiro) jejum, que é renunciar ao mal e aderir ao bem, do qual o jejum alimentar é imagem e prática eficaz, cada crente deve fazer experiência da insuficiência humana e da absoluta necessidade da graça de Deus diantes das seduções do mundo hodierno. Por isso, a prática do jejum, mais do que masoquismo, é um acto de amor a Deus que ajuda a relativizar tudo aquilo que, no dia a dia, dá ilusão de constituir o critério de felicidade.
Só levando estas realidades a sério é que a quaresma pode ser para a Igreja «tempo favorável» e «dia da salvação».

sábado, 10 de fevereiro de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra deste VI Domingo do Tempo Comum (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)


Em pleno Dia Mundial do Doente (coincidente com a memória litúrgica de Nossa Senhora de Lurdes), a liturgia da Palavra oferece-nos como tema principal uma das doenças que mais preocupações causava no tempo bíblico: a lepra. De facto, a primeira leitura mostra-nos as leis prescritas pelo livro do Levítico para com os leprosos. Esta doença, para além do sofrimento de quem dela padecia, criava igualmente um status negativo do ponto de vista social, uma vez que obrigava o leproso a viver fora da comunidade, longe de todos (e de Deus, já que estavam impedidos de frequentar as sinagogas e o Templo). Além disso, o seu estado de «homem impuro» era agravado pela consciência de que a doença era provocada por algum pecado (seu ou de descendente). Ganha por isso mais força a acção libertadora e curativa de Jesus no episódio do Evangelho: ‘relativizando’ a distância que a Lei prescrevia, rompe barreiras pela proximidade que leva ao toque (qual gesto sacramental) que regenera individual e socialmente aquele leproso. No fundo, ao humanizar a Lei, Jesus sacraliza o humano e centraliza a Sua (e nossa) acção na frase paulina: «fazei tudo para glória de Deus».
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O Evangelho de hoje faz-nos recordar aquilo que tantas vezes acontece nos gestos sacramentais: um toque (ou gesto), uma palavra, uma transformação de realidade, e como base de tudo a união de duas vontades (a do crente e a de Jesus). Apesar de não se poder negar categoricamente a veracidade de alguns dos milagres efectuados por Jesus, a intenção dos evangelistas não passa primeiramente por relevar a cura física, mas antes a terapia espiritual que Cristo empreende em quem d’Ele se aproxima com fé. Neste caso concreto, percebe-se claramente que a lepra era vista a partir de várias perspectivas: dado ser contagiosa, o leproso deveria manter-se longe das pessoas e suas casas (exclusão social); dado poder ser consequência de um pecado (seu ou de outro), torna a pessoa impura, física e espiritualmente (exclusão religiosa). Ou seja: estava votado a uma total alienação social, cultural e religiosa, entregue unicamente a si mesmo.
Porém, Jesus é um grande inovador no modus operandi: a Lei em si não tem valor se não privilegiar a pessoa humana. Por isso, sem caridade, sem misericórdia nunca se alcançará o «pleno cumprimento da Lei» postulado por S. Paulo na epístola aos Romanos. E esta será sempre uma tensão constante na vida das nossas comunidades, que exige permanentemente um sério discernimento e audácia evangélica: destruir o mal (pecado), curando as feridas e regenerando o doente (pecador). Sabemos que essa é a pedagogia de Deus vivida em e por Seu Filho, Jesus Cristo; essa deve ser também a pedagogia terapêutica e medicinal da Igreja para com os seus filhos. S. Paulo disso faz eco ao exortar os cristãos de Corinto a tudo fazer «para glória de Deus» e a não evitar esforços na busca da salvação de todos. Ele próprio, ao pedir que o imitem como ele imita Cristo, num auto-elogio (o chamado género mimésis) que é apanágio do seu epistolário, mais não faz do que apontar o modelo Jesus como motor da vida eclesial. Neste sentido, as leituras desafiam cada crente a aproveitar a boa vontade dos ‘leprosos’ de hoje como oportunidade favorável para reencaminhar para Aquele que tudo pode transformar. O grito do leproso «Se quiseres, podes curar-me» é o grito de tantos anónimos que nos caminhos da vida se sentem desamparados, marginalizados e segregados por uma sociedade (e tantas vezes, por uma comunidade crente) que não escuta, não acolhe e não se aproxima. Para nós, cristãos, fica o testemunho do gesto de Jesus: o compadecer-se (sentimento de com-partilha da dor e sofrimento), o estender a mão (disponibilidade para ajudar e convite à confiança), o tocar (sinal visível de que não há barreiras mas proximidade efectiva e afectiva, sem distinções étnicas e religiosas) e o falar (através de uma Palavra dotada de força salvífica que cumpre eficazmente as duas vontades de cura – a do leproso e a de Deus).
A isto nos tem interpelado continuamente o Papa Francisco, exortando a não termos medo de tocar as feridas da humanidade. As chagas dos ‘leprosos’ de hoje são as chagas de Cristo, devendo ser amadas com igual intensidade e ter um lugar prioritário na vida da Igreja. Pois, como afirma o teólogo checo Tomás Halík em O meu Deus é um Deus ferido, «ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus. Ser tocado por elas é receber a graça da Fé».

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra deste V Domingo do Tempo Comum (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)



«Todos Te procuram», dizem Pedro e os companheiros a Jesus. Desde sempre esta premissa esteve no horizonte de pensadores, filósofos e teólogos de todos os tempos. De muitas formas, com muitos rostos, através da razão ou da revelação, Deus tem sido, ao longo dos tempos, a maior das questões. Deus pode não ser uma evidência para alguns, mas não deixa de ser uma pergunta para todos. Daí que de muitas maneiras a procura de Deus tem sido um desafio empreendido por tantos. A questão de Deus existirá sempre que persistir a questão da existência humana e a questão do sentido da vida. A própria Sagrada Escritura tematiza esta matéria, e disso nos testemunha a liturgia de hoje nas suas diferentes perspectivas: a figura de Job como paradigma daqueles que questionam a passividade divina diante do sofrimento (do justo); o apóstolo Paulo como espelho daqueles para quem a questão de Deus é uma questão fulcral, enquanto Boa Nova (Evangelho) a ser anunciada; e a multidão que segue Jesus como representativa da humanidade que só no Senhor pode encontrar a resposta para os seus problemas.
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Uma das características do Jesus de Marcos é a Sua itinerância. Como Evangelho do caminho do discípulo por excelência, a aparente incapacidade de Jesus Se fixar num lugar impele os Seus seguidores (e o leitor) a fazer o mesmo percurso, a ir atrás, a caminhar com Ele. Ao longo desse trajecto, contemplam-se não só os milagres, as curas ou as palavras das Suas pregações, mas também a forma como rezava. Por isso, diante do Evangelho percebemos alguns traços da pessoa de Jesus, que como cristãos somos chamados a imitar.
A acção pastoral de Jesus centra-se muito na proximidade. Para Jesus, todos são importantes a Seus olhos. Dá a sensação que Jesus tinha a capacidade de levar as pessoas a sentirem-se únicas, mas sobretudo a sentirem-se amadas (nomeadamente quando tantos marginalizavam aqueles que se aproximavam d’Ele). No entanto, percebe-se que não obstante a centralidade da pessoa e da sua salvação, Jesus vivia as relações com absoluta liberdade: ‘fazia o que tinha a fazer’, com naturalidade, mas tinha a consciência de que havia uma grande multidão a quem a salvação deveria chegar. A insaciedade diante do número de ‘crentes’ era apanágio da Sua missão: «Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que Eu vim».
Tudo isto fazia Jesus com a máxima discrição possível, inclusivamente na oração. A insistência nos pedidos de que não divulgassem a Sua identidade prende-se não só com uma espécie de ‘segredo messiânico’ que atravessa todo o evangelho de Marcos mas também com o afastamento do sensacionalismo e do protagonismo que Jesus jamais desejou. Também a missão da Igreja, enquanto continuação da missão do seu Senhor, deve caracterizar-se por esta ‘discrição’ própria de quem sabe que o mistério que torna presente sacramentalmente não vem de si mas de Deus, e por isso não deve ser autorreferencial. A forma como reza e a sede de procura daqueles que ainda não encontraram Deus ou vivem o drama do sofrimento deve ser o «título de glória» da Igreja e de todos os seus ministros (clérigos, religiosos e leigos), como bem salienta Paulo. O «sonho missionário de chegar a todos», como refere o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, não pode deixar de constituir para a Igreja de hoje o horizonte máximo da Sua acção, fazendo-se «tudo para todos, a fim de ganhar alguns a todo o custo». E tudo isso porque, de forma latente ou evidente, continua a existir uma multidão que procura Jesus ou que, de um modo menos convencional, persiste em interrogar-se sobre a questão primordial da existência humana e do sentido da vida.