quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra de Quarta-feira de Cinzas (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)



Com a celebração de Quarta-feira de Cinzas a Igreja dá início ao sagrado tempo da Quaresma. Durante este tempo litúrgico, ao mesmo tempo que celebra e acompanha os ritos catecumenais de preparação para o batismo, a Igreja propõe um caminho não só de preparação (para a Páscoa) mas de profunda e sincera conversão (para a vida). Assim como o deserto foi o lugar da prova, mas também da revelação do poder de Deus quer para Jesus (durante 40 dias) quer para o Povo hebreu a caminho da Terra Prometida (durante 40 anos), também agora cada um de nós é desafiado a reconhecer a fragilidade humana e a procurar a medicina curativa da graça divina na Sua misericórdia ao longo destes 40 dias quaresmais. Esta simbiose perfeita culmina na conversão de coração e tem na esmola, oração e jejum (no jeito proposto por S. Mateus) as suas ferramentas mais eficazes. A isso nos convida Jesus no Seu Evangelho como caminho de configuração mais plena à vontade do Pai.
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Uma das máximas que poderíamos aplicar ao que Jesus considera como verdadeiro espírito religioso seria: ‘não interessa tanto o que fazemos, mas o amor com que fazemos’. Esta premissa tem uma relevância ainda maior neste tempo da Quaresma, em que tantos crentes parecem medir a sua competência religiosa através de um certo farisaísmo apoiada no que se faz e não no sentido do que se faz. É para este perigo que Jesus adverte no Evangelho de início de tempo quaresmal e que já o profeta Joel denunciava, pedindo uma conversão sincera do coração (interior) e não só aparente (rasgar os vestidos).
A Igreja, acolhendo o ensinamento de Jesus aos Seus discípulos, propõe um itinerário de conversão apoiado em três modalidades: a esmola, a oração e o jejum. No fundo, Jesus não propõe nada de novo na forma, mas sim no conteúdo e no sentido religioso. O Senhor não procura, de modo algum, negar o valor humano e espiritual dos três, antes lhes confere o horizonte da gratuidade e discrição próprio de quem privilegia o ser em detrimento do parecer.
A esmola, mais do que um acto mecânico de despejar moedas para manter uma consciência ‘tranquila’, deve sintonizar cada um com o amor genuíno ao próximo. Dar esmola deve implicar sempre um ‘dar-se como esmola’, ou seja, oferecer-se gratuitamente por quem mais necessita do nosso auxílio, não só económico como humano e espiritual. Isso faz-se sem procura de visibilidade e reconhecimento, mas com a genuinidade de quem ‘ama porque ama’, dando sem esperar receber nada em troca, o que a renúncia quaresmal traduz muito bem, visto ser canalizado para rostos muitos deles anónimos e desconhecidos.
A oração proposta por Jesus sintoniza-nos, por seu turno, numa sincera e fecunda relação com Deus. Este forma de oração agradável a Deus não pode ser entendida como mera reprodução mecânica de rotinas, devoções e gestos piedosos, que, devido à hipocrisia com que são feitas, mascaram a falta de gratuidade que a deve pautar. O Evangelho desafia-nos a uma oração ‘inútil’, isto é, que não procura ser útil para quem a faz nem procura ser título de vanglória pessoal para os que contemplam aquele que reza. A oração deve ser um lugar de encontro de duas vontades, sem qualquer espécie de ‘relacionamento comercial’ ou ‘prestação de serviços’ de carcácter instrumental. Qualquer modalidade de oração que não se oriente em função da gratuidade não entra na lógica do Evangelho e é repudiada por Deus.
Por fim, o jejum é uma bússola que nos sintoniza numa relação correcta connosco próprios: com os nossos desejos, vontades, impulsos. O jejum não se define apenas na renúncia aos alimentos, mas numa fuga a tudo aquilo que pode alienar o ser humano e deformar a sua imagem e semelhança de Deus. Neste sentido, o horizonte espiritual do jejum é o progresso no auto-domínio diante de realidades negativas, como o pecado. Exercitando o (verdadeiro) jejum, que é renunciar ao mal e aderir ao bem, do qual o jejum alimentar é imagem e prática eficaz, cada crente deve fazer experiência da insuficiência humana e da absoluta necessidade da graça de Deus diantes das seduções do mundo hodierno. Por isso, a prática do jejum, mais do que masoquismo, é um acto de amor a Deus que ajuda a relativizar tudo aquilo que, no dia a dia, dá ilusão de constituir o critério de felicidade.
Só levando estas realidades a sério é que a quaresma pode ser para a Igreja «tempo favorável» e «dia da salvação».

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