quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Do Jubileu Extraordinário ao Jubileu Ordinário da Misericórdia





Misericórdia e mísera (misericordia et misera)... assim começa a mais recente Carta Apostólica do Santo Padre na conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Naturalmente, a fecundidade deste Jubileu não se fecha nestas inspiradas e inspiradoras letras do nosso Papa, mas também não nos deixa sossegados na passividade de uma história eclesial que se limitou a viver mais um momento jubilar. No fundo, permanece a questão: e agora?!

O Papa lança o mote no n. 16 desta mesma carta: «Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia do nosso coração permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se inclina sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós possamos imitá-Lo inclinando-nos sobre os irmãos. A saudade que muitos sentem de regressar à casa do Pai, que aguarda a sua chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras e generosas da ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar, introduziu-nos no caminho da caridade, que somos chamados a percorrer todos os dias com fidelidade e alegria. É a estrada da misericórdia que torna possível encontrar tantos irmãos e irmãs que estendem a mão para que alguém a possa agarrar a fim de caminharem juntos». Efectivamente, a vontade do Santa padre é mesmo a de efectuar esta revolução pastoral: a afirmação da misericórdia como critério e como forma eclesial por excelência. No dinamismo da complexa vida eclesial, a misericórdia não pode permanecer como um mero apêndice ou decoração nas múltiplas actividades das nossas comunidades; ela deve ser o motor das próprias rotinas, singulares e comunitárias, na vida do cristão.

No fundo, o Papa quer que a Igreja respire misericórdia. O simbolismo da Porta Santa anuncia isto mesmo: que a Igreja, no seu todo, inale o odor da misericórdia divina, o deixe entrar em todas as dimensões da sua vida e não bloqueie o acesso a quem a procure. Por isso, mesmo que materialmente as «portas santas» sejam fechadas, a Porta da Misericórdia permanecerá aberta; mesmo que tenha chegado ao fim o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, perpetuar-se-à o Jubileu Ordinário da Misericórdia. A própria faculdade expandida a todos os sacerdotes na absolvição de certos pecados «reservados ao bispo» (neste caso, o aborto) manifesta este desejo de que as portas da misericórdia divina jamais se fechem para quem a quer receber de coração arrependido; como no caso da mulher adúltera, no cap. 8 do Evangelho de S. João, a «misericórdia triunfa sobre o juízo», a pessoa triunfa sobre a lei, o Espírito triunfa sobre a letra. Bendito seja Deus porque nos concedeu, mediante a intuição (inspirada) do Santo Padre, a possibilidade de renovar (e refundar) o nosso olhar misericordioso sobre tudo (e todos) o(s) que nos rodeia(m).

Convido-vos a ler na íntegra esta Carta profundamente programática. Como diz o Santo Padre, «o perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a sua vida» (n.2). O Papa Francisco adverte para um perigo: «a tentação de se limitar a fazer a "teoria da misericórdia" é superada na medida em que esta se faz vida diária de participação e partilha» (n.20). Por isso, no fim adverte para a urgência de uma verdadeira cultura da misericórdia, em que as obras da misericórdia ganham a densidade de uma «artesanalidade», pois «nenhuma delas é cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil modos e, embora seja único o Deus que as inspira e única a "matéria" de que são feitas, ou seja, a própria misericórdia, cada uma adquire uma forma distinta» (n.20). Não se confunde com filantropia, nem com meros sentimentos de comoção; é uma verdadeira comunhão com o olhar de Cristo sobre a humanidade, como tão bem testemunha o ícone deste Jubileu Extraordinário; porque é simultaneamente divina (enquanto dom) e humana (enquanto acção), «a cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na solidariedade concreta para com os pobres. É um convite premente para não se equivocar onde é determinante comprometer-se (n.20)».

Por isso, o Papa, em jeito de definição da essência da misericórdia que se exige a cada crente, define a mesma em vários vectores, que devem ser objecto do acolhimento e da práxis das comunidades:
  • A Misericórdia como celebração, em que mais do que um exercício parenético, se torna verdadeiramente realizadora (mediante a acção de Deus que santifica) e libertadora (na alegria de quem se sente acolhido, amado e perdoado);
  • A Misericórdia como consolação, manifestada sobretudo na solicitude e acompanhamento próximo às situações mais frágeis e dramáticas da vida humana (crises familiares, momentos de luto pela morte de alguém, etc.);
  • A Misericórdia como renovação e redenção, que tem a capacidade de regenerar aquilo que estava decaído, mediante o encontro de dois corações: «o de Deus e o do Homem. (...) Nisto se nota que somos verdadeiramente uma "nova criação" (Gal 6, 15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma vida nova; fui "misericordiado" e, consequentemente, feito instrumento da misericórdia» (n.16).
  • A Misericórdia como imaginação, nesta criatividade operante que encontra novas formas de expressão no mundo de hoje. Importa, a este ponto, (re)descobrir novas obras de misericórdia e (re)descobrir novos lugares onde a misericórdia possa ser vivida com horizontes renovados e onde a Igreja possa ser autenticamente a «túnica de Cristo» (n.10).
Aos padres lança igualmente um forte apelo: «peço-vos para serdes acolhedores com todos, testemunhas da ternura paterna não obstante a gravidade do pecado, solícitos em ajudar a refletir sobre o mal cometido, claros ao apresentar os princípios morais, disponíveis para acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando com paciência o seu passo, clarividentes no discernimento de cada um dos casos, generosos na concessão do perdão de Deus. Como Jesus, perante a adúltera, optou por permanecer em silêncio para a salvar da condenação à morte, assim também o sacerdote no confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que cada penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas ministro da misericórdia» (n.10).



«Este é o tempo da misericórdia», repete de forma continuada o Santo Padre. A misericórdia vive-se no agora, a misericórdia conjuga-se no presente. Por isso... "misericordiemos"!