terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Proposta de leitura bíblica para o Tempo do Natal


Depois de neste tempo de advento termos lido (ou continuarmos a ler) o profeta Isaías, antecipo a proposta de leitura bíblica para o tempo do Natal. Que elas nos ajudem a reconhecer em Jesus a Palavra que se faz carne, rosto visível do Deus invisível.

Tempo de Natal

Dezembro
25
Romanos 1-2
26
Romanos 3-4
27
Romanos 5-7
28
Romanos 8-9
29
Romanos 10-11
30
Romanos 12-14
31
Romanos 15-16
Janeiro
1
1 Coríntios 1-3
2
1 Coríntios 4-7
3
1 Coríntios 8-10
4
1 Coríntios 11-13
5
1 Coríntios 14-16
Epifania
2 Coríntios 1-3
7
2 Coríntios 4-7
8
2 Coríntios 8-10
9
2 Coríntios 11-13
10
Gálatas 1-3
11
Gálatas 4-6
12
Efésios 1-3
13
Efésios 4-6


S. José: figura do guardião

(S. José a dormir, imagem favorita do Papa Francisco)

José assume, nas narrativas da Infância, a centralidade no Evangelho de Mateus (ao contrário de Lucas, que foca sobretudo Maria). Isto deve-se ao facto de Mateus escrever para cristãos vindos do Judaísmo, e por isso esforça-se em mostrar como Jesus se insere na linha messiânica de David, da qual José faz parte (daí o recenseamento ser em Belém, a cidade de David). Por isso. José é uma figura insubstituível no tempo final do advento e em todo o tempo do Natal.
A S. José se aplica bem o ditado: «O sonho comanda a vida»; ou então uma frase de Fernando Pessoa: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce». Parece que em José estas duas frases se encaixam de forma perfeita. Primeiro, porque em José foi o sonho a comandar a sua vida, e não as suas ambições e projectos. José é o homem dos sonhos, mas de sonhos que não se tornam pesadelo porque José é um homem «justo», ou seja, santo, temente a Deus. No sonho do anúncio do nascimento de Jesus, no sonho do anúncio da fuga para o Egipto (Mt 2,13-18), no sonho do regresso a Nazaré (Mt 2,19-23), José não se deixa vergar diante das dificuldades, não se deixa alienar nas inseguranças, mas age, de forma muito humana, aos apelos de Deus, seguindo a obediência, mais que a razão ou algum impulso secreto do seu coração. Três sonhos que o desinstalam, mas que não o aprisionam nem atemorizam, que superam a fadiga de não poder viver a paz desejada. Devem ter sido momentos muito desgastantes, mas reconfortantes, pois Deus confiou-lhe um desígnio, um projecto, que ele abraçou, não obstante a a aparente contradição.
José é o homem da fé e da confiança. Em primeiro lugar, distancia-se do acontecimento, reflectindo e amadurecendo a situação inexplicável da gravidez de Maria (repudiar em segredo não significa um qualquer sentimento de ódio, mas de uma compaixão que evita a difamção pública de sua noiva); depois, acredita no sonho como uma revelação (Maria, nisso, teria a vida mais facilitada, pois viveu uma aparição em forma de visão); por fim, relê o sonho à luz da Palavra de Deus e das profecias veterotestamentárias, concretizando as etapas normais de quem tem fé: conhece, escuta, acolhe e compreende a Escritura ou qualquer outra forma de manifestação divina. Este processo fica concluído com a obediência, sem a qual a fé tem ganha dimensão: «quando despertou do sono, José fez como lhe ordenara o Anjo do Senhor».
Neste tempo de preparação próxima para o Natal, S. João torna-se modelo de acolhimento, de alguém que acolhe e protege este tesouro que é dado: o próprio Deus feito Homem (Menino). Assim como Jesus aprendeu de S. José muito daquilo que viria a ser, também hoje acolhemos de S. José as ímpares virtudes que nos transformam em guardiães de Jesus e da Sua Igreja, no silêncio orante e no testemunho de quem se sabe portador de um dom incomensurável.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Nossa Senhora: figura da fé


(Quadro da Anunciação, da autoria do Beato Fra Angelico, Convento de S. Marcos - Florença)

A liturgia do Advento conhece, a partir do dia 17 de Dezembro, uma mudança de tonalidade: ao ênfase da última vinda de Cristo (vinda escatológica), segue-se a memória da primeira vinda (histórica), sempre vivida e celebrada na consciência de uma vinda sempre contínua (vinda sacramental). E neste tempo, Maria ocupa um lugar de primeiríssimo destaque.

Se Isaías e João Baptista, cada um a seu modo, preparam a vinda do Messias, Maria é aquela que torna essa realidade possível, também ela preparada desde sempre por Deus para esta insubstituível missão. É nela que se concentram os holofotes isaianos, ainda que relidos cristicamente num período posterior: «Eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, chamado Emanuel». Jesus é Deus connosco porque Maria é também connosco, da mesma natureza, comungando a debilidade da nossa carne, mas preservada por Deus do pecado original para acolher no seu seio o Verbo eterno do Pai.

Mas este desígnio salvífico de Deus que passa através de Maria não é um mero pré-determinismo, não é um evento que se coloque na agenda para nos recordar que irá acontecer; Maria foi sempre, até ao fim, inteiramente livre. Maria poderia ter rejeitado a proposta de Gabriel, poderia ter sido discípula sem ter sido mãe, poderia ter vivido a rotina normal de uma esposa sem se consagrar plenamente ao Senhor. Poderia, mas não o fez! Porque Maria é uma mulher de fé, para quem o «Sim» a Deus é mais que um dever, é uma obrigação assumida em plena liberdade, cujas consequências vão para lá de uma atitude meramente exterior e de tempos cronologicamente bem definidos!

Neste tempo do Advento e do Natal, Maria constitui o grande sinal do que acontece a quem vive segundo a fé. Como Mãe, gera a Cristo no seu seio; como discípula, gera a Cristo no seu coração. Como Mãe, dá à luz o Deus Connosco (o Emanuel), como discípula ensina-nos a conceber o «Deus em nós». Este é o itinerário de fé que Nossa Senhora nos propõe nestes dias que faltam até à celebração do Natal do Senhor: que o «Sim» seja um princípio normativo das nossas opções diante da vontade divina, a fim de que o nosso coração se torne um útero da «Palavra» que faça Cristo germinar, encarnar e actuar na nossa vida. A este propósito diz Santo Agostinho: «Maria cumpriu, e cumpriu perfeitamente, a vontade do Pai; e, por isso, Maria tem mais mérito por ter sido discípula de Cristo do que por ter sido mãe de Cristo. Maria era bem-aventurada porque antes de dar à luz o Mestre, trouxe-O no seu seio. Maria era feliz porque ouviu a palavra de Deus e a pôs em prática; guardou mais a verdade de Cristo na sua mente do que o corpo de Cristo no seu seio».

Rezemos com Maria e como Maria para que se faça em nós segundo a Palavra do Senhor, e a obra da salvação continue através do nosso testemunho, sinal visivel de que Deus continua a ser «Emanuel», Deus Connosco, e a realidade da Encarnação encontre na sacramentalidade da Igreja o prolongamento histórico deste mistério vivido há 2 mil anos através das sagradas entranhas da Virgem Santa Maria. Só quando Jesus deixar de ser um evento exterior para se tornar um hóspede interior do coração é que acontece verdadeiramente Natal; é esse o processo de fé que em Maria vemos espelhado como virtude a imitar, a acolher, a desejar!


sábado, 9 de dezembro de 2017

João Baptista: figura da preparação


(S. João Baptista, da autoria de Caravaggio - Musei Capitolini, Roma)

O Evangelho segundo S. Lucas traça um paralelo nada ingénuo entre João Baptista e Jesus: duas anunciações angélicas de cariz extraordinário, dois nascimentos de forma inesperada (uma de forma extraordinária, porque de uma estéril de idade avançada, outro de forma miraculosa, porque de uma virgem), duas missões complementares (João como voz, Jesus como Palavra). O ministério de Jesus não pode ser interpretado sem a necessária alusão a João Baptista, por quem Ele se deixou baptizar.

João Baptista, em contexto de advento, não é apenas uma figura de charneira entre o Antigo e o Novo Testamento, que encarna uma certa radicalização da apocalíptica judaica. João é «o maior entre os filhos de mulher» (Mt 11,11), tão grande que a Igreja sentiu necessidade de celebrar solenemente o seu nascimento (24 de Junho). Mas a sua grandeza deriva da sua profunda humildade, como nos recorda o evangelho deste domingo («Vai chegar depois de mim quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar para desatar as correias das suas sandálias» (Mc 1,7).

João assume-se como um duplo sinal: sinal de que de facto o «Verbo incarnou» no seio de Maria, e ainda no seio de sua mãe Isabel exulta de alegria perante a presença embrionária do Messias (no fundo, João constitui a verdadeira ecografia de Maria, sinal da veracidade do anúncio de Gabriel); e sinal porque testemunha da presença («Eis o Cordeiro de Deus») e do modus vivendi de Jesus («É necessário que Ele cresça e eu diminua»). João é figura da preparação porque sabe o que é ser testemunha/mártir: deixar que Outro seja nele, apagando-se para que outro possa brilhar. João Baptista tinha discípulos que o seguiam, alguns até pensavam que ele seria o Messias. O Precursor poderia ser tentado a assumir-se como tal, ganhando protagonismo e o reconhecimento das multidões. Mas não o faz. Porque João é voz; e a voz é apenas um instrumento para que a Palavra ganhe corpo. O Baptista é a voz que clama, mas é Jesus a Palavra, não só dita como Incarnada. 

Neste sentido, João Baptista completa a profecia de Isaías. São duas figuras que se complementam: o que em Isaías é esperança, em João Baptista torna-se preparação, porque iminência. O que Isaías vislumbrava de forma remota e longínqua, João Baptista observa embrionariamente, reconhece como já presente, e prepara a irrupção de Deus no mundo em Jesus, saindo de cena. Eis o grande convite e testemunho de João Baptista como figura da preparação, não só em palavras mas sobretudo em actos: o advento é o tempo em que somos desafiados a saír de cena, a deixar o protagonismo Àquele que quer nascer para nós e em nós. Só assim o advento se torna fecundo e verdadeira preparação da contínua vinda de Jesus à nossa vida.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Isaías: figura da esperança


(Pintura: «Isaías», da autoria de Rafael, Igreja de Santo Agostinho - Roma)

Após ter feito a proposta de uma leitura bíblica continuada, que sem casualidade começa com a leitura da profecia de Isaías, decidi reflectir um pouco sobre quatro grandes figuras do advento, uma em cada semana, que a própria liturgia faz menção na Palavra proclamada.

A primeira dessas figuras é Isaías. Este é o primeiro dos chamados «profetas maiores». O seu livro possui um total de 66 capítulos (o maior em toda a Bíblia), mas no fundo são três livros:
  • O Proto-Isaías (Is 1-39)
  • O Deutero-Isaías (Is 40-55)
  • O Trito-Isaías (Is 56-66)
O Proto-Isaías (o único que remonta ao tempo de Isaías ou da sua escola, cerca de 756 a.C.) é aquele que neste momento mais nos interessa na relação do profeta com o tempo do Advento. Isaías é um homem de Jerusalém, nascido numa família alargada, tendo tido vários filhos e frequentado os círculos próximos dos «sábios» e dos «funcionários reais». A sua vocação profética (Is 6), descrita em ambiente de verdadeira corte celeste e uma 'visão' da glória de Deus, mostra-nos como a realidade cultual do Templo lhe era próxima. Ao mesmo tempo, ela constitui um espelho da consciência do profeta acerca da santidade divina, aspecto nevrálgico na sua mensagem que o leva à constatação do fosso que o povo eleito foi criando em relação ao seu Deus.

A 1ª parte do livro (Is 1-12) é fundamentalmente constituída por oráculos, visões e poemas que fazem eco da situação religiosa e política do seu tempo. As suas descrições, carregadas de um realismo que muitas vezes se aproxima da desolação, são marcadas por grande severidade. Isaías, um verdadeiro visionário, interpreta a situação de exílio e constantes invasões estrangeiras do território israelita como uma consequência das infidelidades do povo. Porém, como verdadeiro profeta, este não se deixa 'alienar' pela situação negativa do presente, mas como paradigma da esperança antecipa a manifestação plena do Senhor e a instauração de um novo reino de paz, onde até «as nações» (e não só os judeus) são acolhidas e conduzidas ao Senhor do universo (Is 2,2). Isaías reactiva, deste modo, o messianismo davídico (ou real), que acelera esta certeza de que Deus enviará um «Ungido» que dará ao seu povo o domínio universal, e ao mundo inteiro a prosperidade e a paz.

É este simbolismo messiânico, de espera e expectativa, contraposto a um povo «que não vê nem ouve», que fez de Isaías uma figura da esperança neste tempo do advento. Várias são as referências, directas ou indirectas, que uma leitura cristã de Isaías vislumbrou como anúncio profético de Cristo, e que a Tradição consubstanciou na práxis litúrgica, nomeadamente nos textos que dão corpo à liturgia do Advento e do Natal:

Is 1,3: «O boi conhece o seu dono, e o jumento a manjedoura do seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer, meu povo não é capaz de entender».

Is 7,14: «O Senhor mesmo vos dará um sinal: Eis que a donzela está grávida e dará à luz um filho, e dar-lhe-ão o nome de Emanuel».

Is 9,1-6: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria [...] Porque um Menino nasceu para nós, um filho nos foi dado».

Is 11,1-9: «Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes [...]».

Que com Isaías não sejamos meros «profetas da desgraça», mas no realismo de quem vê a realidade com a fé que capacita o nosso olhar para além da superficialidade, nos apresentemos como sinalizadores de esperança numa sociedade carregada de pessimismo.