terça-feira, 8 de agosto de 2023

JMJ: uma semana a passear no meio da confusão

 

«Armem confusão”: foi este o pedido do Papa Francisco aos jovens para as JMJ Lisboa 2023. Não sabemos se com realismo ou ironia, mas jovens sem confusão não seria, com certeza, uma jornada da juventude. Talvez por isso, as notícias pré-jornadas fossem cultivando um sentimento de pânico generalizado, como se os jovens que nos visitam fossem hooligans violentos e destruidores de esplanadas, ou até fanáticos terroristas que se infiltrariam para tentar um ataque em larga escala. O que é certo que as multidões esperadas provocaram o êxodo de muitos lisboetas (por certo, não católicos...), que deixaram vazios os parques de estacionamento geralmente sobrelotados no centro da cidade.

Foi sem grande expectativa que aguardei as JMJ. Procurei transformar-me num desconhecido completamente aberto à surpresa, ao imprevisto, até ao imerecido. Os dias foram passando e, sem quase dar por isso, eis-nos na semana há tanto anunciada: ela chegou a toda a pressa.




Dia 0: tudo a postos. Começam a chegar contingentes de peregrinos, um pouco desnorteados e sem saber para onde ir, mas com um sorriso na cara. Começam a dançar, pular, cantar... não se importam de esperar, nem questionam para onde vão e como vão ficar. Isso é irrelevante. Por detrás de uma aparente timidez, solta-se uma cristã rebeldia que começa a desacomodar e a criar o ambiente JMJ. Para um “laico”, poderia parecer mais um festival da juventude, como o “Nos Alive” ou o “Rock in Rio”. Talvez um pouco mais pacífico. Gradualmente, vamos vendo que os peregrinos fizeram bem o trabalho de casa: já vão balbuciando algumas palavras em português: «obrigado», «bom dia», ou um mais profundo: «louvado seja Jesus Cristo».



Destaca-se uma grande legião de camisolas amarelas. Como se viria a revelar ao longo da semana, eles, os voluntários, foram a pedra angular do evento. Disponibilidade, serviço, sorrisos, abraços e muita, muita paciência: fazendo jus à cor da t-shirt, foram verdadeiras camisolas amarelas desta grande corrida: crianças, jovens e menos jovens, de forma mais visível ou mais discreta, estavam por todo o lado. Neles encaixa bem o lema: «quem não vive para servir, não serve para viver».
Estava derrubado o primeiro preconceito: afinal a Igreja é alegre e, pasme-se, jovem. Mas ainda não era nada...




Dia 1: o grande início das JMJ. Na paróquia da Nossa Senhora de Fátima eram colocadas as Relíquias do Beato Pier Giorgio Frassati e de S. João Paulo II. Desde logo se começa a sentir a atração por estes elementos, tanto simbólicos como reais, no apelo comum à santidade. O painel exterior dava o mote: «Constrói a civilização do amor». O barulho aumentava de tom pelo número cada vez maior de grupos: coreanos, croatas, alemães, taiwaneses... Marca comum: a alegria e boa disposição. Aqui não há rivalidades nem violência, mas um único propósito comum: o encontro com Cristo, em Igreja. As filas para a veneração das relíquias já chegam quase a uma hora de espera. A alegria exterior começa a transformar-se numa alegria silenciosa e contemplativa junto do Senhor que ali se faz presente. De facto, como cantaria mais tarde Carminho, Ele é a estrela, nós somos peregrinos.




E eis que chega o momento da abertura oficial das JMJ, com a missa presidida pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. O Parque Eduardo VII transforma-se numa grande Colina do Encontro. Aquele cenário levou-me até à israelita Tabgha, onde Jesus ordenou aos Seus ouvintes que se sentassem na erva para O escutar e, posteriormente, para lhes dar o pão da vida. De facto, foi um momento de graça, não só com a multiplicação eucarística do pão, mas com a partilha generosa dos dons: cada um com o que tinha, à sua maneira, na sua língua. A diversidade das cores que compunham o quadro rompiam a monotonia com que, por vezes, o Marquês se veste, seja de vermelho (mais vezes) seja de verde (menos vezes). Nunca o Marquês de Pombal, um fervoroso perseguidor da Igreja e, sobretudo dos jesuítas, pensou “presenciar” esta invasão católica, mesmo permanecendo de costas para o altar. No centro de tudo, um Cardeal visivelmente sorridente e feliz; na colina, uma assembleia grata a um homem que tanto (injustamente) sofreu para chegar a este dia. Comovedor e merecido o momento dos aplausos. Na Igreja não se deixa ninguém cair. Com Maria, chegámos apressadamente e agora somos chamados a partir apressadamente para uma jornada inesquecível. Estava dado o mote.




Dia 2: a chegada do Papa, assinalada com o toque efusivo dos sinos. O Papa quis vir ter com os seus jovens, dando um grande sinal de humildade, ao não se deixar vencer pela doença e dificuldade. Quando mais tarde disse que não somos um número para Deus, mas um rosto, uma cara e um coração, sem maquilhagem, o Santo Padre é o primeiro a dar o exemplo: não recusa apresentar-se diante de nós com as marcas da “sua” paixão, apoiado em muletas e ajudado por uma cadeira de rodas. O seu programa é extenso, mas o seu olhar é único. No seu discurso no CCB, manifesta um surpreendente (?) conhecimento da literatura portuguesa. Apenas curiosidade intelectual? Creio que não. Francisco convida os portugueses a não esquecer as suas raízes cristãs, que fizeram de Portugal, no passado, uma nação tão importante na evangelização. E por isso não perde a oportunidade de lançar uma alfinetada a alguns dos presentes, censurando a eutanásia, “uma realidade mais amarga que as águas do mar”. Mas Lisboa é, nestes dias, a cidade da esperança. E estas JMJ devem constituir o lugar onde se começam a esboçar os três estaleiros de construção da esperança: o ambiente, o futuro, a fraternidade.






Pelas paróquias, as manhãs são passadas a redescobrir o sentido da fé: «Rise up», “levanta-te”. As igrejas e outros espaços enchem-se de jovens que rezam, cantam, louvam, aprendem e celebram. É contagiante esta alegria, esta invasão de “estrangeiros” que provocam os ocidentais mais tendentes ao subjetivismo (e interioridade) da fé. A igreja, neste caso a de Fátima, torna-se um lugar de festa em tom coreano: mais de mil, entre os quais 10 bispos e mais de 100 padres. Não percebemos o que dizem, mas partilhamos claramente a mesma linguagem: a linguagem do amor cristão. Os bispos não se envergonham de dançar ao ritmo da assembleia, sem se importar que as mitras caiam das suas cabeças: batem palmas, sorriem para o lado, unem-se à voz das suas ovelhas. Já não escondiam a alegria de vir a receber as próximas JMJ. Ali estavam como que num tubo de ensaio, a mostrar aos europeus o que significa uma Igreja viva, em crescimento e em maturação. Igreja caduca e moribunda? Quem os vê, sente exatamente o contrário. Oxalá aprendamos com eles alguma coisa...



Dia 3: o acolhimento ao Papa Francisco. O festival da juventude continua por todo o lado. Cada vez são mais os peregrinos que chegam. Mas faltava estar com o peregrino nº1. O encontro com os universitários na UCP daria o mote para este primeiro encontro: «não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos». O Papa pede um regresso ao essencial, sem dicotomias vazias e inócuas, que fazem do cristianismo uma ideologia e um combate entre “ismos” que desvirtuam o sentido unitário da Igreja. Os jovens são chamados a ser “coreógrafos” da dança da vida, mais do que (pensamento meu) visitadores de museu. E dança não faltou na cerimónia de acolhimento. Foi comovente ver entrar o Santo Padre ao som do “Foi Deus”, magnificamente interpretado pela fadista Mariza. A identidade portuguesa foi o cenário desta manifestação da catolicidade da Igreja, que as bandeiras nacionais visivelmente representavam. Todos... todos, todos, todos... até o Alentejo com o seu “cante” derrubou o estigma de ser os portugueses menos católicos. Coreografias à parte, assistiu-se a uma verdadeira manifestação pentecostal. O Santo Padre concretiza, de forma bem vincada, eloquente e entusiástica, o que todos sabemos: «na Igreja há espaço para todos». E pede que se repita: «Todos, todos, todos». Aquele santuário de portas abertas mostra que a Igreja é uma mãe que abraça todos os filhos. Que aceita e integra todos, mas não aceita tudo, como mais tarde frisaria no avião a caminho de Roma. A Igreja é de todos, mesmo que nem todos se sintam Igreja. Mas esta multidão mostrou que ama a Igreja, que está na Igreja e com a Igreja. O Papa quis dizer que “NÓS” somos a Igreja, e não só os bispos, padres e os seus círculos mais próximos. Todos, todos... porque na cruz todos fomos abraçados no amor de Jesus e por Ele salvos. Sim, a Igreja é de todos, é para todos, depende de todos, mesmo que os caminhos nela trilhados sejam diferentes de pessoas para pessoa.




Dia 4: é o dia da misericórdia. O Papa confessa 3 jovens. Cumpre, assim, o que havia revelado antes: a Igreja é para todos. Ali TODOS são acolhidos, escutados e regenerados como filhos. Impressionante a “onda” de bênçãos que Deus derramou durante esta semana no sacramento da reconciliação. Só na Cidade da Alegria foram cerca de 15 mil. Mas muitos mais por essa cidade fora, nos sítios menos prováveis e mais recônditos, porque a misericórdia não tem lugar específico, é quando e onde Deus o entender e o momento propiciar. As relíquias na Igreja de Fátima têm cada vez mais peregrinos, as conferências enchem-se de gente sedenta de uma “Boa Notícia”: Deus ama-nos como somos, como seres únicos, dotados de uma originalidade própria e criados por e para o amor. Por isso mesmo, nós valemos o sangue que Cristo derramou por nós. A Via Sacra quis mostrar-nos que TODOS temos lugar na cruz de Jesus: é por nós que Ele se entrega. O testemunho de uma abortista, um jovem vítima de depressão e um ex-toxicodependente reforçam o grito do dia anterior: TODOS têm lugar na Igreja. A via-sacra foi um momento redentor: redentor pelas lágrimas, onde Jesus Se faz presente; redentor pela extraordinária beleza da coreografia, tornando um acontecimento do passado num evento do presente: o caminho de Jesus é também o nosso caminho. «Jesus caminha para a cruz, morre na cruz, para que a nossa alma possa sorrir».




Dia 5: enquanto o Papa se faz peregrino de Fátima, indo e vindo apressadamente, os peregrinos iniciam a sua marcha para o Campo da Graça. As primeiras estatísticas fazem estremecer os mais céticos: 1,5 milhões de pessoas. O calor faz temer os mais otimistas. A manifestação de fé que ali se vive faz abalar os mais “laicos”. Afinal, a Igreja ainda está viva, e bem viva. As imagens falam por si: os custos passam para segundo plano, e a Igreja dá um sinal de pobreza quando aqueles que representam o seu futuro, os jovens, se instalam nas condições possíveis (e impossíveis): com aperto, com calor, sem teto, sem ar condicionado. À medida que anoitece, o céu vai deixando mensagens em várias línguas: levanta-te, segue-me. O Papa chega, e com ele uma mensagem que fica para a vida: «o único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo é quando queremos ajudá-la a levantar-se». É esta alegria missionária que os jovens são convidados a transportar consigo, como Maria o fez quando visitou Isabel. Pelo meio, um aviso: «na vida nada é de graça: só o amor de Jesus». Provocação pelas discussões pré-JMJ? Talvez. Mas aquilo que ali se vive é graça e é de graça: uma multidão que canta a sua fé, mas que faz silêncio quando surge no meio o próprio Amor em pessoa: Jesus. De facto, Ele é a estrela, nós somos peregrinos, como cantava Carminho. O mundo fica suspenso para que a Estrela resplandeça sob o altar: 3km de pessoas em profunda reverência. Como frisou Mariza, a maior manifestação de amor alguma vez vista em Portugal. É ali, no coração de Jesus, que TODOS temos lugar.





Dia 6: a alvorada com o padre DJ, Guilherme. Sinal de uma Igreja arejada e aberta, longe dos rótulos com que muitos a querem pintar. O Papa convida-nos a resplandecer, a escutar e a não ter medo. Anúncio feliz do Jubileu 2025 e das JMJ 2027 na Coreia do Sul. A despedida soava já a uma doce nostalgia, que a “saudade” não consegue apagar. O mais jovem de todos os peregrinos, com 87 anos, parecia rejuvenescido com esta onda jovial. Onda essa que o Papa evocou na sua última aparição em solo português: convidou-nos a sermos surfistas do amor. Jesus, que foi o primeiro surfista conhecido, já havia dito a Pedro, primeiro Papa, para não ter medo de surfar e confiar na Sua Palavra. Esta é a grande mensagem que continua a ressoar: «Não tenhais medo» de surfar, por maiores que sejam as ondas.




Dia 7: a ressaca, a nostalgia, o vazio das multidões, mas a plenitude de um coração cheio, que precisa agora de assimilar e discernir o que de tão bom viveu nestes dias. A JMJ começa agora. Há um grande mar por navegar e muitas ondas por surfar. Jesus é o timoneiro, e a “Geração 2023” dará corpo a esta rejuvenescida barca que será sempre de Pedro.





domingo, 6 de novembro de 2022

D. Daniel Henriques: da eloquência do silêncio à encíclica dos gestos

 


«O Senhor deu, o Senhor tirou. Bendito seja o nome do Senhor» (Jb 1,21). É com estas palavras que Job resiste à tentação de maldizer a Deus pela grave situação em que se encontrava. Talvez tenha sido também uma frase balbuciada por D. Daniel nestes últimos meses da sua vida. E é seguramente uma expressão que encaixa perfeitamente no que sentimos: bendizer o Senhor pelo tanto que nos deu através do ministério pastoral de D. Daniel.

Conheci o D. Daniel como seminarista. Sempre vi nele uma incarnação (quase) perfeita daquele sonho missionário de chegar a todos que o Papa Francisco veiculou na "Evangelii Gaudium" e que D. Manuel Clemente assumiu como programa para esta diocese de Lisboa. Vi nele um irmão, alguém empenhado na construção de uma autêntica fraternidade sacerdotal, que recebi na imposição das mãos aquando da minha ordenação, nas palavras dirigidas na Missa Nova ou até nos simples gestos de cordialidade com que me recebia nas suas paróquias. Vi em D. Daniel (então Padre Daniel) um irmão mais velho, inspirador pelo testemunho, provocador pelo estilo: um padre "de cajado e sandálias", revestido com a estola da misericórdia, de sorriso fácil, embora tímido, com um coração aberto (e sedento) para chegar a todos.

A partir do dia 25 de novembro de 2018, passou a ser também um pai. D. Daniel não se vangloriou por uma aparente "progressão na carreira", porque como ele próprio assume no seu lema episcopal. "todas as minhas fontes estão em Ti". D. Daniel não dizia palavras vazias: tudo falava de Deus, tudo apontava para Jesus. Despojou-se de qualquer tentação de "poder" para o transformar em serviço. O seu ministério apoiou-se no essencial; e nessa essencialidade, aproximou-se deveras da santidade. Não era apenas um homem bom; era um homem santo.

A partir de outubro de 2019, sem deixar de ser pai, passei a ter em D. Daniel um amigo. Estava eu em Roma, no quarto ano da minha aventura romana. D. Daniel já sabia o que tinha, mas, pensando mais nos outros do que em si, preservando mais a amizade do que a comodidade, quis dizer presente no Consistório que faria do seu colega e amigo D. José Tolentino Mendonça Cardeal da Igreja Romana. A doença foi mais forte, e obrigou-o a trocar a Basílica de S. Pedro pela Clínica Gemelli. As notícias não eram animadoras: teria que ser submetido a intervenção cirúrgica.

Foram 3 semanas de graça (e de graças). Não foram apenas 3 semanas, para mim, de visitas quase diárias ao hospital; foram 3 semanas a lidar com um santo. Foi impressionante a forma como D. Daniel lidou com a doença. Em primeiro lugar, com muita serenidade; mas também com um doloroso realismo de quem sabia que um longo calvário o esperava.

No início da sua "estadia", pediu 3 coisas: um terço, o breviário e, se possível, uns chinelos de quarto. A fragilidade física de D. Daniel era sobrenaturalmente contrariada por esta "teimosia" em se agarrar ao Senhor. Nunca ouvi uma queixa. Nunca ouvi uma repreensão. Da sua voz cansada só brotavam palavras de gratidão pelas manifestações de carinho e de comunhão que chegavam de Portugal e às quais não conseguia responder; e pelas visitas, muitas delas inesperadas, com que foi sendo brindado. Creio que naquelas semanas o D. Daniel percebeu o alcance e a verdadeira dimensão do seu ministério episcopal. Mas a sua simplicidade impedia-o de o exprimir publicamente. Ele foi o bispo do essencial e da simplicidade.

Recordo-me de me ter dito que a primeira coisa que fez quando chegou a Roma foi confiar o seu ministério (e a sua doença) à proteção e intercessão de S. João Paulo II, de quem era devoto. E foi precisamente no antigo quarto do Santo Padre que D. Daniel viveu os seus últimos dias na Clínica Gemelli. Mais uma das "deuscidências" que o Senhor possibilitou nestas semanas. Na sua boa disposição, dizia-me que quando saísse iríamos comer massa e um gelado. Era o que lhe apetecia. Mas também o primeiro encontro com o Papa Francisco, já pela segunda vez adiado devido à doença.

Deus foi generoso para com D. Daniel: não se limitou a cumprir estas duas vontades (comeu gelado e massa, e teve a graça de concelebrar com o Santo Padre em Santa Marta), mas permitiu que conhecesse a Biblioteca do Vaticano e outros locais emblemáticos ainda desconhecidos.

Os meses que se seguiram foram um sofrido e doloroso Calvário, vivido em chave pascal. Entre a tensão da oração de Jesus no Getsemani e a liberdade com que Jesus entregou ao Pai o Espírito, D. Daniel experimentou provavelmente todas estas sensações. Mas viveu-as com um profundo sentido de fé e de silêncio, desejando apenas que o seu testamento espiritual fosse uma reprodução fiel do seu padroeiro de curso: «combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé». 

Vi-o pela última vez no dia 5 de outubro. O seu sorriso tentava esconder o que de facto sabia estar a viver. Estava nas mãos de Deus. Aliás, como sempre esteve e como sempre se sentiu. Mesmo sabendo que poderia ser uma possibilidade, nunca imaginei que fosse a última vez que o iria ver. Desde 2019 que sempre me agradecia por aqueles momentos vividos em Roma. E dois dias antes de falecer, numa troca de mensagens, foi essa a última frase: «Obrigado pela amizade». Mas esta é que deveria ser a minha frase: «Obrigado pela amizade». Conheci um santo, um verdadeiro testemunho de Cristo Bom Pastor que fez da eloquência do silêncio e da encíclica dos gestos o seu verdadeiro testamento espiritual.

Obrigado, D. Daniel. Pela amizade. Por tudo. A-Deus!

segunda-feira, 18 de abril de 2022

A Páscoa de Jesus e as «nossas Páscoas»


A conclusão da vida terrena de Jesus suscitou uma série de sentimentos nos discípulos de Jesus: se por um lado se deixaram mergulhar pelo desânimo, pela tristeza e pela desilusão de um caminho não concluído da forma inicialmente idealizada, por outro lado não poderiam ignorar as sementes de ressurreição lançadas ao longo da vida pública de Jesus, nomeadamente no contexto da subida para Jerusalém. Pairava no ar a expetativa de um "volte-face" que pudesse cumprir as Escrituras que na altura ainda não tinham compreendido plenamente.

É nestas circunstâncias existenciais que os discípulos tentam interpretar a morte de Jesus e confirmar a veracidade das Suas "profecias". Mas nesta indagação interior, os discípulos de Jesus descobrem que a ressurreição anunciada pelo Mestre não se referia apenas à Sua exaltação pascal (a Páscoa de Jesus), mas também à própria «elevação» espiritual requerida a quem segue Jesus (a Páscoa dos discípulos... a nossa Páscoa): «se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto» (Cl 3,1). Jesus não é o único a ter que «sair vitorioso do túmulo», como se canta no Precónio Pascal. Também nós temos que derrubar os nossos próprias obstáculos e sair dos nossos próprios túmulos. O evangelho deste domingo de Páscoa, do evangelista João, apresenta três das personagens mais emblemáticas neste contexto pascal e qui aqui personificam, a seu modo, três patologias de corações carecidos de uma intervenção cirúrgica por parte do Médico Celeste. E é precisamente na ida ao hospital do Gólgota que se veem curados e (re)iniciam a aventura de um caminho que julgavam concluído.

Em primeiro lugar, somos confrontados com a escuridão de Maria Madalena. Aquela que viria a ser a "primeira apóstola" da ressurreição (a apóstola dos apóstolos) vai ao sepulcro «de manhãzinha, ainda escuro». Não era só o dia que estava escuro, também o seu coração permanecia escuro e ferido, talvez por não ter ainda aceitado completamente a sua história e não se conformar com um passado do qual não se orgulha, mas que havia sido exorcizado na misericórdia de Jesus. Madalena permanece à distância: vê a pedra retirada do sepulcro mas não tem coragem de se aproximar e, mais ainda, de nele entrar. Naquele momento, ainda não tinha percebido que para se ressuscitar é preciso entrar nos nossos túmulos, nos aspetos de morte que ainda nos invadem e dos quais não nos conseguimos libertar. Ressuscitar com Cristo é permitir que Ele nos liberte, pelo dom da misericórdia e do perdão, das feridas e demónios que ainda nos atormentam. E se isso não for suficiente, há sempre um Pedro e um João que nos podem ajudar a realizar esse percurso purgante da nossa própria existência.   

Em segundo lugar, emerge a figura do discípulo predileto de Jesus, João. A sua jovialidade e voluntarismo levam-no a correr imediatamente ao sepulcro, mas o medo do vazio obrigam-nos a abrandar o andamento. O discípulo amado representa todos aqueles que têm medo do vazio e se amedrontam diante do desconhecido. É o efeito de quem tem um coração sobrelotado e não sabe reorganizar os seus espaços e compartimentos. O horror ao vazio, traduzido numa fuga ao silêncio e à quietude, conduz invariavelmente ao excessivo preenchimento da vida e do coração com coisas aparentemente boas, mas não essenciais. Essas "coisas" permanecem como pedras de tropeço e barreiras sólidas que obstaculizam o esvaziamento de si, condição sine qua non para o preenchimento vital do coração com o sopro divino. Priorizar o vazio onde a Palavra de Deus se faz ouvir e a experiência do Ressuscitado se faz sentir deve constituir um desafio pascal e existencial perene para nos afeiçoarmos às coisas do Alto e não às da terra.

Em terceiro lugar, salienta-se a lentidão de Pedro, que não se explica meramente por uma questão de idade face a João. O princípe dos apóstolos sinaliza aqui o coração acomodado, ou seja, representa aqueles que se resignam a um cultivo do bem-estar e do comodismo, e que por isso rejeitam avançar mais solida e velozmente no caminho por Deus proposto. Há momentos da vida em que é preciso acelerar e andar ao ritmo da vontade divina, sair da inércia em que nos instalamos, e rejeitar o auto-anestesiamento que impede de chegar mais velozmente à santidade desejada. Temos que aprender a andar ao ritmo de Deus e não ao nosso próprio ritmo, e assim vencer as resistências pessoais que ainda condicionam a entrada plena na vida pascal que Cristo oferece. Pedro venceu a auto-justificação cómodo da sua indignidade e pecado (as suas negações) e enfrentou com coragem o sepulcro. Só entrando e vendo é que se pode acreditar. É também este processo dinâmico que hoje, com Madalena, João e Pedro, somos chamados a fazer: a entrar, a ver e a acreditar, fazendo da Páscoa de Jesus a nossa própria Páscoa.

domingo, 17 de abril de 2022

Os três "amores": homilia de Quinta-feira Santa


«Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim». É com esta expressão que S. João abre solenemente este evangelho do lava-pés, anunciando o conteúdo da Hora da entrega de Jesus por amor de nós em Sexta-Feira Santa e sacramentalmente antecipado na última ceia de Quinta-Feira Santa.

Este amor até ao fim é a nota dominante do mandamento novo do amor que hoje celebramos. Nesta indicação pouco ingénua de João percebemos que o mandamento novo instituído por Jesus não é uma realidade parcial nem uma atividade em part-time. Amar não é um sentimento nem uma emoção, é antes uma opção e um compromisso. Amar até ao fim é aderir ao projeto de Deus de forma incondicionada e incondicional. Hoje, nesta celebração, somos chamados a amar até ao fim três realidades ou lugares onde o Senhor se faz presente.

1. Amor à Eucaristia
A Eucaristia não foi instituída para consumir, mas para nos consumar, plenificar. Amar a Eucaristia não se traduz numa mera ida à missa nem se restringe a um cumprir um preceito. Amar a Eucaristia significa “eucaristizar” a nossa existência: levar a vida para a Eucaristia e a Eucaristia para a vida. Os primeiros cristãos diziam, a propósito da Eucaristia, «sem Domingo não podemos viver». Hoje, já em Portugal existem dezenas de comunidades sem eucaristia dominical. E isso não nos deve deixar indiferentes, pelo menos no modo como devemos e podemos revalorizar sempre mais este sacramento (seja na sua frequência e participação, seja na formação e no serviço). Amar a Eucaristia permite adorar a Deus e contemplar a vida com olhar divino, deixando-me embalar pelos desafios que daí emergem. Na eucaristia alimentamos uma relação de amor, por isso o relógio deve parar, o mundo exterior deve ficar em suspenso; devemos desejar prolongar esse tempo de amor gratuito, sem pressas e sem a tentação de procurar uma “Missa light”, o mesmo é dizer “quanto mais curta e rápida, melhor”. Amar a Eucaristia é prolongar na adoração eucarística e nas visitas ao sacrário esta relação de amor com o Senhor que sempre me espera.

2. Amor ao sacerdócio (ministerial)
Sacerdócio e Eucaristia têm a mesma origem sacramental nas palavras de Jesus: «Fazei isto em memória de Mim». Não há amor a Cristo e à Eucaristia sem amor ao sacerdócio, que torna sacramentalmente presente o legado ministerial do Bom Pastor. Amar o sacerdote até ao fim não é só querer-lhes bem, e muito menos querer que façam o que quero e idealizo; nem basta rezar por eles e entregá-los ao coração do Pai. Amar os sacerdotes é colaborar com eles, estar disponíveis para ser a sua família. Se o sacerdote deve tornar visível o estilo de Deus (proximidade, ternura e compaixão), o mesmo se deve aplicar aos sentimentos de todos para com o sacerdote, vendo nele um pai e pastor e não só um funcionário do sagrado. Amar o sacerdote implica amar os seus defeitos, sem com eles pactuar. Isso exige iniciativa para o ajudar a superá-los e a deles se libertar: exigir, sem forçar; compreender, sem condenar; corrigir, sem julgar; dialogar, sem murmurar. O sacerdote é, nas palavras do Cura d’Ars, o “amor do coração de Jesus” pelo qual nos chegam a Palavra e os sacramentos, e isso bastaria para os amarmos, até com os seus defeitos.

3. Amor à humanidade
O lava-pés traduz uma máxima veiculada em Mt 25: «o que fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes». A maior prova de amor de Deus pela humanidade foi a Sua solidariedade com a natureza humana; em linguagem teológica, a Sua condescendência. O hino de S. Paulo aos Filipenses traduz isso mesmo: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da Sua igualdade com Deus (...). Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens» (Fil 2,6ss). Esta é a lição do lava-pés: não devemos olhar e amar a humanidade a partir de cima (sobranceria), mas a partir de baixo (humildade). Lavar os pés significa tocar o que de mais débil tem o ser humano: as suas feridas, os seus cansaços, as suas fadigas e dores. Lavar os pés é cuidar daquilo que carece de maior atenção, mas sobre o qual recai o peso da existência; é cuidar dos mais pobres, mas também das dimensões mais recônditas do nosso coração que anseiam por ser regeneradas e purificadas na misericórdia de Deus. Lavar os pés significa preparar os outros e preparamo-nos a nós próprios para o Caminho, para a grande peregrinação da vida, no qual somos companheiros e irmãos.


Três presenças diferentes, mas todas presenças reais de Cristo. Três amores que o nosso coração deve acolher. Peçamos ao Senhor, nesta noite, a graça de O amarmos na Eucaristia, no sacerdócio e na humanidade.



segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A morte e a escatologia no Antigo Testamento: da resignação à ressurreição

 

(Figura: Vale dos ossos revivificados da profecia de Ezequiel)


Hoje celebramos a comemoração dos fiéis defuntos, dia em que de forma mais visível fazemos memória daqueles que cumpriram a sua peregrinação terrena e já partiram para a morada eterna dos Céus. Nem sempre sabemos lidar com a morte, mesmo que nos digamos crentes: por vezes vivemos uma resignação sem esperança, um drama sem fé, uma cruz sem ressurreição, uma sexta-feira santa sem Páscoa. Nós, cristãos, acreditamos na ressurreição de Cristo, e é à luz pascal que hoje olhamos a realidade da morte como passagem (Páscoa), sabendo que "se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Por isso, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor" (Rm 14,8). Mas terá sido sempre assim? Qual a teologia do Antigo Testamento sobre a morte e sobre a escatologia (realidades últimas da vida)? Neste pequeno ensaio apresentarei, de forma panorâmica, a evolução geral do entendimento veterotestamentário acerca da escatologia do Antigo Testamento.


1. A Morte aceite como uma realidade natural

Na maior parte dos livros do Antigo Testamento, a ideia de uma vida depois da morte é uma realidade pouco presente: a preocupação do povo de Deus parece centrada nesta vida e na forma como a vivemos, hic et nunc. A morte é serenamente aceite, e a longa vida considerada uma bênção. Assim se aborda o tema da morte nas tradições patriarcais do livro do Génesis, onde se diz que os Patriarcas (Abraão, Isaac e Jacob) morrem felizes, idosos e saciados de bens (Gn 25,8, por exemplo, para o caso do primeiro). Não se vislumbram nestas narrativas do termo da vida dos Patriarcas qualquer referência a uma vida depois da morte. O mesmo sucede com algumas das figuras proeminentes da tradição bíblica, como Moisés, Gedeão, Tobias ou Job, entre outros. Também quando se lê que depois da morte se reunirão com seus pais (como por exemplo em Gn 48,21), isto não diz respeito a um determinado lugar post-mortem, mas à partilha do mesmo túmulo de família que os seus antepassados. Deste modo, o homem bíblico aceita a morte sem grande dramaticidade e como parte da experiência vital do ser humano (exceptuando, talvez, a morte precoce e inesperada, antes do tempo normal, que é entendida como punição divina). 

A concepção israelita clássica afirma que todos os seres humanos, depois da morte, ingressam no she'ol, um lugar comparado aos infernos que se encontra numa vasta região subterrânea e que se caracteriza pela ausência de vida. Esta é uma visão muito cantada nos salmos, como se depreende deste exemplo de Sl 115,17-18: "os mortos já não louvam a Deus, nem os que descem ao lugar do Silêncio. Mas nós, os vivos, bendizemos o Senhor, desde agora e para sempre!". Is 38,18 mete igualmente na boca de Ezequias uma oração que apresenta esta concepção: "não são os infernos a louvar-Te, nem a morte que Te glorifica, pois já não esperam a Tua fidelidade aqueles que descem à cova". A morte é, por isso, uma realidade aceite com resignação e profundo realismo, a meta final do ser vivo: pode ser amargura para quem vive a plenitude de vida, mas uma sentença agradável para quem já esbarra na velhice dos seus dias. Só de modo muito velado e em pouquíssimos textos se intui uma sorte diferente para os bons e para os maus (aspeto que só em alguns livros apócrifos, como Enoch, se tornará mais visível).


2. A escatologia profética: a ressurreição como 'imagem' da restauração do povo de Israel

A experiência do exílio da Babilónia (séc. VI a.C.) foi vivida com um grande sentido de dramaticidade e tragicidade. A noção de distância face à sua terra e face ao Templo, lugar da habitação de Deus, fez com que começassem a emergir interrogações sobre o fim último, não tanto de cada pessoa em particular, mas do povo enquanto tal, como realidade coletiva. Até ao século VI/V a.C., a perceção de uma vida para lá da morte permanece aquela que sinteticamente descrevi no item anterior. O exílio traz novas questões, não tanto relativamente ao horizonte futuro e escatológico, mas relativamente a esta história concreta, vista pelos profetas como carregada de opressões, injustiças e guerras. O primeiro a trazer para a reflexão estas questões foi o profeta Oseias, ainda antes do exílio: em Os 6,1-3 surge, pela primeira vez, a ideia de uma restauração do povo de Israel entendida como ressurreição. A 'ressurreição' do povo, neste caso o povo do reino do Norte, onde Oseias exerce o seu ministério, é olhada como uma conversão, um regresso ao Senhor de quem se tinham afastado, e cuja consequência parece ser a invasão da Samaria por parte do exército assírio (que culminará na destruição da Samaria em 721 e a posterior deportação dos israelitas para a Assíria). Contudo, se esta ruína é atribuída a Deus, permanece a esperança (e a certeza) de que será o próprio Senhor a 'levantar' e devolver a vida ao povo sem grande demora (2/3 dias, segundo o profeta). Esta linguagem da ressurreição está intimamente ligada ao conhecimento de Deus e a um estar/caminhar na Sua presença. É uma questão teológica que está em jogo: permitirá Deus que o Seu povo seja destruído? A linguagem esponsal e a metáfora matrimonial dos três primeiros capítulos deste livro mostram como o amor de Deus supera e vence as traições do povo. Segundo Oseias, mesmo diante das dificuldades e infidelidades do povo, Deus sempre o fará reviver e regressar ao Seu seio.

Um século e meio mais tarde ganharia relevo o profeta Ezequiel, que, vivendo já a experiência do exílio da Babilónia, reflete com maior vigor o problema entre o Deus de Israel e o povo que constantemente viola a Sua aliança. O melhor exemplo desta realidade encontra-se no capítulo 37 e a sua visão dos ossos secos que são revivificados graças ao sopro do Espírito. Esta imagem de Ezequiel não se liga tanto a uma ressurreição dos corpos, como o entende a perspetiva cristã, mas à 'ressurreição' da casa de Israel enquanto tal, segundo a própria explicação do profeta (Ez 37,10-14). Os sepulcros que o Senhor abrirá e dos quais fará sair o povo representam a permanência de Israel em terra estrangeira, a Babilónia, onde Israel pensar estar morto enquanto povo. É verdade que esta visão deve ser lida e interpretada no seu sentido metafórico já citado; porém, subjaz uma ideia a não ser descurada: Deus tem a capacidade de dar vida a quem está morto, mesmo que aqui se trate de revivificar um povo inteiro. E fá-lo mediante o sopro do Seu Espírito, em clara analogia com o momento da criação de Gn 2,7.

O terceiro caso paradigmático encontra-se em Isaías, nomeadamente o capítulo 26. Este texto, que segundo alguns autores foi inserido mais tarde na obra (já após o regresso do exílio), continua a linha previamente descrita em Oseias e Ezequiel. Tal como em Ezequiel, o povo proclama não ter mais esperança através de algumas imagens de dor, como o parto, mas o profeta reitera, de forma incisiva, que "os teus mortos voltarão a viver", salientando que ainda há esperança para quem acredita que tudo parece ter terminado. Contudo, acreditamos que possa haver aqui qualquer coisa de novo: a simples afirmação de que "os meus cadáveres ressurgirão" e o convite a que os que jazem no pó da terra se levantem e exultem parecem indicar algo mais do que a simples restauração de Israel. Neste texto, começa a ganhar contornos mais nítidos a possibilidade de uma 'ressurreição' para aqueles que são fiéis a Deus ("os teus mortos"; "os meus cadáveres"); permanece obscura a forma como isso acontecerá.


3. As particularidades da escatologia na literatura sapiencial

A antropologia bíblica não promove o dualismo, antes se apoia numa visão unitária do ser humano, isto é, composto por duas partes inseparáveis: o corpo material e a alma espiritual. Por isso, um israelita não concebe uma vida para lá da morte que não envolva a pessoa inteira, pelo que a haver algo post-mortem, essa realidade deve envolver também a corporeidade: se o corpo morre, poderá ressurgir. Nesta ótica, está completamente afastada a hipótese da crença numa imortalidade da alma, aspeto que vigorou nalguns livros não canónicos.

A literatura sapiencial, por seu turno, não assume como prioridade a reflexão sobre a vida depois da morte. O seu foco está sobretudo na práxis existencial e no sentido 'desta' vida. Alguns autores, como Coélet (ou Eclesiastes), possuem inclusivamente uma visão negativa da vida depois da morte. Basta recordar passagens como  Ecl 3,18-21 ou Ecl 9,2-6. O autor afirma que não há nada depois da morte: o ser humano regressa ao pó de onde veio (3,20), e ninguém nos poderá dizer se existe alguma coisa para além desta vida. Não há princípio de retribuição, porque o destino é igual para todos: para os bons e os maus, para os homens e para os animais. Coélet é de um realismo levado ao extremo: nega a vida depois da morte, mas não postula um simples Carpe Diem. A vida deve ser levada a sério e vivida na procura de aproveitar e saborear os dons que Deus dá. Esta visão será igualmente seguida e desenvolvida por Ben-Sirá (ou Eclesiástico), autor do século II a.C., que permanece ancorado na tradição israelita do she'ol. Ambos parecem negar a escatologia, mas podem ensinar-nos algo: quem não sabe aproveitar os bens penúltimos da vida, jamais poderia saborear os bens últimos.

As grandes novidades vêm de três livros: o de Daniel, o Segundo Livro dos Macabeus e o livro da Sabedoria (estes dois últimos estão escritos apenas em grego, pertencendo ao leque de livros que definimos como deutero-canónicos, ou seja, reconhecidos pela tradição cristã, mas que se mantém fora do cânone hebraico das Escrituras). Os dois primeiros aproximam-se semanticamente na concepção da vida após a morte: a ressurreição (corpórea) é uma possibilidade para os israelitas que morrem na defesa da lei de Deus. A ressurreição apresenta duas características: não se trata de um mero regresso à vida precedente e deve-se ao poder criador (e recriador) de Deus. A crueza com que é descrita a morte dos irmãos no Livro dos Macabeus, e a certeza destes de que inclusivamente os membros corporais despedaçados se reintegrarão na vida futura, mostra a firme convicção da fé na ressurreição dos corpos.

O livro da Sabedoria, provavelmente escrito por volta do século I a.C., constitui, por assim dizer, o vértice da escatologia veterotestamentária, e como que o gancho com o Novo Testamento. Os seus seis primeiros capítulos são um verdadeiro tratado de escatologia, o que constitui uma grande novidade no Antigo Testamento. O autor sagrado relê, de forma inovadora, Gn 1-3 e a finalidade da criação do ser humano. Neste contexto, afirma o sábio que "Deus criou cada ser para que subsista" (Sb 1,14), para a vida, e que as criaturas do mundo são portadoras de salvação. A visão do mundo é totalmente positiva e não apresenta nada de pessimista. A morta não faz parte do projeto de Deus sobre a criação, e por isso "o Hades não reina sobra a terra" (Sb 1,14). O autor vai mais longe ao vincar que Deus criou o ser humano para a/na incorruptibilidade (aftharsía), termo que faz associar à sua condição de imagem da natureza de Deus. A incorruptibilidade faz, por isso, parte do desenho salvífico originário de Deus; o uso deste termo, aliado ao envolvimento de todo o cosmos na salvação do ser humano que a terceira parte do livro postula, faz-nos chegar à conclusão de que o autor estaria a pensar numa ressurreição dos corpos como a realidade escatológica por excelência.

Esta ideia é reforçada pela certeza de que Deus não criou a morte (Sb 1,13), e que esta entrou no mundo pela inveja do diabo (Sb 2,24). Não se trata da morte física, pois essa todos experimentam, mas daquela realidade que nos impossibilita de estar em comunhão com Deus. A morte é, por isso, uma realidade ambígua: não é um mal em si, porque é sobretudo um sinal da criaturalidade do ser humano, mas para os ímpios torna-se ícone de uma morte mais radical, que é a corrupção eterna. A morte apresenta-se, assim, revestida de duas facetas: uma para o justo e outra para o ímpio; para um é passagem para a vida eterna, para o outro é trânsito para a morte eterna.

Estas afirmações sobre o destino final do ser humano é provavelmente a grande novidade deste livro e iluminará a escatologia do Novo Testamento. Elementos como o juízo escatológico (presente em Sb 3,9ss) por parte de Deus, a sorte diferente dos justos e dos ímpios e a ressurreição dos mortos entendida a partir da incorruptibilidade do ser humano criado por Deus serão temas dominantes nos escritos neotestamentários.


Sugestão de leitura: "Morte e vida na Bíblia", de Alain Marchadour, da Coleção "Cadernos Bíblicos" (Difusora Bíblica)





domingo, 1 de novembro de 2020

Ser santo: um desafio sempre atual


 (Grupo escultórico do Sermão da Montanha, Domus Galilaeae)


(Meditação feita na "Liturgia Diária" para o dia de hoje)



Sugestão de leitura: "Alegrai-vos e exultai", Exortação Apostólica sobre o chamamento à santidade no mundo atual (2018)

sábado, 31 de outubro de 2020

Criação e Evolução: conciliação ou oposição?

 


Muitos colocam a questão: será a teoria evolucionista de Darwin compatível com a doutrina cristã (e judaica) da Criação do mundo? Não farei aqui um tratado de ciência, até porque não possuo as ferramentas necessárias para o fazer, mas procurarei esclarecer o sentido das narrativas da criação que encontramos no livro do Génesis, o primeiro livro do cânone bíblico.

É verdade que a relação entre fé e ciência nem sempre foi pacífica. Durante quase vinte séculos, a Igreja olhou a Bíblia na perspetiva da 'inerrância' e da 'literalidade', tentando fazer do biblicismo a sua forma de argumentar contra a ciência: tudo aquilo que a ciência postula como verdade, só pode ser aprovada se tiver correspondência direta na Bíblia e na (errónea) interpretação que se fazia dos seus escritos. O que é certo é que a Sagrada Escritura não é um livro de história, tal como a compreende hoje a modernidade. Os critérios da historiografia moderna não são os mesmos critérios que estão na base da redação das Escrituras Sagradas. Por isso, os autores bíblicos não procuram traduzir por escrito a história de Israel com os critérios da historiografia, mas antes partilhar a experiência de fé de um povo, transformada em história da salvação pelo reconhecimento da presença de Deus em todo o período histórico do povo.

É nesse sentido que nasce o livro do Génesis. Génesis quer dizer 'génese', origem. É o livro que narra as origens do mundo e do povo enquanto humanidade. Porém, do ponto de vista cronológico, este livro não é o primeiro a ser escrito. Apesar de se situar e nos situar nas origens (a primeira palavra da Bíblia é "Bereshit", no princípio), o livro de Génesis só foi escrito depois do exílio (século VI a.C.). Isto mostra como o interesse do povo de Israel não estava tanto na história, mas na teologia: se o povo enquanto tal, na sua identidade cultural e religiosa, havia nascido na aliança de Deus no Sinai, através da mediação de Moisés, havia também que completar a biblioteca sagrada com um livro que pudesse fazer remontar essa 'história' de Deus com a humanidade ao início de tudo. 

Os primeiros onze capítulos do Génesis têm como objeto narrativo as origens do universo e da humanidade. O texto, depois de uma longa história de transmissão oral e de redações escritas parciais e fragmentárias, estabiliza-se no já citado século VI a.C. Ainda que a temática do cosmos como criação de Deus fizesse parte da bagagem de fé do povo de Israel, é precisamente a partir da catástrofe que o exílio da Babilónia constituiu que a Criação entra definitivamente na tradição teológica bíblica. Por isso, mais do que falar de uma narrativa do "início", que remete para uma determinada realidade que se coloca numa linha cronológica precedente à própria história e ao próprio tempo, devemos falar de uma narrativa das "origens", enquanto algo que funda e dá consistência à realidade presente no seu ser, o seu fundamento último. Nesse sentido, os relatos da criação (falo em plural, porque até na própria narrativa vemos dois momentos distintos da criação) não têm a intenção de narrar um "início" histórico do mundo do ponto de vista científico, mas a sua "origem", o seu significado perenemente presente do ponto de vista antropológico. São, por isso, chamados de relatos "etiológicos", míticos, que mais do que afirmar o "como" e "quando" nasceu o mundo e o ser humano, procura sobretudo responder ao "porquê" da vida, e aí dizer que "Deus é Criador", sem grandes pretensões de exatidão histórica e científica (basta pensar que a palavra hebraica "iôm", traduzida na Bíblia por "dia", pode significar outras realidades de medição temporal, como era geológica); não pretendem descrever nem o primordial Big Bang nem a biografia paleontológica ou histórica do primeiro Homem. Talvez por isso o grande protagonista do relato não tem nome próprio: "'Adam" quer dizer "homem", não na sua singularidade (esse tem o nome hebraico de "îsh"), mas no sentido de humanidade, ser humano. A Criação do mundo por parte de Deus, tal como se manifesta na narrativa bíblica, não contradiz nem a Teoria do Big Bang nem a teoria da Evolução; pois os relatos bíblicos apenas pretendem afirmar a realidade divina como o princípio absoluto da vida. 

Mas até nisso a Bíblia não é inovadora. A leitura dos primeiros capítulos do Génesis faz emergir inegáveis contactos com os 'mitos de origem' dos povos circunvizinhos, nomeadamente a Mesopotâmia e a Babilónia. Estas afinidades literárias são identificáveis de forma particular nos relatos da criação, do dilúvio e da Torre de Babel (entre estas obras inspiradoras do livro de Génesis contam-se o "Enuma Elish" e "Gilgamesh"). Israel exprime, assim, a sua fé utilizando narrativas de outros povos, não como decalque, mas como manifestação da superioridade do Deus de Israel sobre o deus dos outros povos e nações. O mito constitui, deste modo, uma forma intuitiva de conhecimento da realidade, que aproxima a história do Homem através da forma da intuição e da linguagem simbólica, dando azo a uma leitura sapiencial e a uma verdadeira "teologia da história". A história do ser humano é vista à luz do seu princípio fundante e criador (e criativo), que é Deus, no qual o Homem encontra a sua essência, princípio e fim, imagem e semelhança.

Depois de vermos tudo isto, continuaremos a afirmar que a teoria da criação narrada no Génesis é oposta à teoria da evolução postulada por Darwin? De modo algum. Há muito que a Igreja deixou de defender o chamado "criacionismo", ou seja, a convicção de que o cosmos nasceu exatamente como vem relatado na Bíblia. O género literário e a intenção do autor do Génesis não vai nesse sentido. Porém, se a convicção bíblica é a de que Deus é Criador, também afirma que Deus é Providente, e que nada foge ao Seu desígnio. Logo, mesmo que do ponto de vista temporal não se possa estabelecer com exatidão histórica a existência do primeiro ser humano, o surgimento do primeiro Homem não pode, nos parâmetros da fé, escapar à acção providencial de Deus: tudo parte do Seu desígnio e da Sua vontade. Não somos produto do acaso, de uma 'evolução' que Lhe escapa e da qual Deus não toma parte. Talvez resida aqui um dos pontos de divergência entre a Bíblia e Darwin.