terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Proposta de leitura bíblica para o Tempo do Natal


Depois de neste tempo de advento termos lido (ou continuarmos a ler) o profeta Isaías, antecipo a proposta de leitura bíblica para o tempo do Natal. Que elas nos ajudem a reconhecer em Jesus a Palavra que se faz carne, rosto visível do Deus invisível.

Tempo de Natal

Dezembro
25
Romanos 1-2
26
Romanos 3-4
27
Romanos 5-7
28
Romanos 8-9
29
Romanos 10-11
30
Romanos 12-14
31
Romanos 15-16
Janeiro
1
1 Coríntios 1-3
2
1 Coríntios 4-7
3
1 Coríntios 8-10
4
1 Coríntios 11-13
5
1 Coríntios 14-16
Epifania
2 Coríntios 1-3
7
2 Coríntios 4-7
8
2 Coríntios 8-10
9
2 Coríntios 11-13
10
Gálatas 1-3
11
Gálatas 4-6
12
Efésios 1-3
13
Efésios 4-6


S. José: figura do guardião

(S. José a dormir, imagem favorita do Papa Francisco)

José assume, nas narrativas da Infância, a centralidade no Evangelho de Mateus (ao contrário de Lucas, que foca sobretudo Maria). Isto deve-se ao facto de Mateus escrever para cristãos vindos do Judaísmo, e por isso esforça-se em mostrar como Jesus se insere na linha messiânica de David, da qual José faz parte (daí o recenseamento ser em Belém, a cidade de David). Por isso. José é uma figura insubstituível no tempo final do advento e em todo o tempo do Natal.
A S. José se aplica bem o ditado: «O sonho comanda a vida»; ou então uma frase de Fernando Pessoa: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce». Parece que em José estas duas frases se encaixam de forma perfeita. Primeiro, porque em José foi o sonho a comandar a sua vida, e não as suas ambições e projectos. José é o homem dos sonhos, mas de sonhos que não se tornam pesadelo porque José é um homem «justo», ou seja, santo, temente a Deus. No sonho do anúncio do nascimento de Jesus, no sonho do anúncio da fuga para o Egipto (Mt 2,13-18), no sonho do regresso a Nazaré (Mt 2,19-23), José não se deixa vergar diante das dificuldades, não se deixa alienar nas inseguranças, mas age, de forma muito humana, aos apelos de Deus, seguindo a obediência, mais que a razão ou algum impulso secreto do seu coração. Três sonhos que o desinstalam, mas que não o aprisionam nem atemorizam, que superam a fadiga de não poder viver a paz desejada. Devem ter sido momentos muito desgastantes, mas reconfortantes, pois Deus confiou-lhe um desígnio, um projecto, que ele abraçou, não obstante a a aparente contradição.
José é o homem da fé e da confiança. Em primeiro lugar, distancia-se do acontecimento, reflectindo e amadurecendo a situação inexplicável da gravidez de Maria (repudiar em segredo não significa um qualquer sentimento de ódio, mas de uma compaixão que evita a difamção pública de sua noiva); depois, acredita no sonho como uma revelação (Maria, nisso, teria a vida mais facilitada, pois viveu uma aparição em forma de visão); por fim, relê o sonho à luz da Palavra de Deus e das profecias veterotestamentárias, concretizando as etapas normais de quem tem fé: conhece, escuta, acolhe e compreende a Escritura ou qualquer outra forma de manifestação divina. Este processo fica concluído com a obediência, sem a qual a fé tem ganha dimensão: «quando despertou do sono, José fez como lhe ordenara o Anjo do Senhor».
Neste tempo de preparação próxima para o Natal, S. João torna-se modelo de acolhimento, de alguém que acolhe e protege este tesouro que é dado: o próprio Deus feito Homem (Menino). Assim como Jesus aprendeu de S. José muito daquilo que viria a ser, também hoje acolhemos de S. José as ímpares virtudes que nos transformam em guardiães de Jesus e da Sua Igreja, no silêncio orante e no testemunho de quem se sabe portador de um dom incomensurável.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Nossa Senhora: figura da fé


(Quadro da Anunciação, da autoria do Beato Fra Angelico, Convento de S. Marcos - Florença)

A liturgia do Advento conhece, a partir do dia 17 de Dezembro, uma mudança de tonalidade: ao ênfase da última vinda de Cristo (vinda escatológica), segue-se a memória da primeira vinda (histórica), sempre vivida e celebrada na consciência de uma vinda sempre contínua (vinda sacramental). E neste tempo, Maria ocupa um lugar de primeiríssimo destaque.

Se Isaías e João Baptista, cada um a seu modo, preparam a vinda do Messias, Maria é aquela que torna essa realidade possível, também ela preparada desde sempre por Deus para esta insubstituível missão. É nela que se concentram os holofotes isaianos, ainda que relidos cristicamente num período posterior: «Eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, chamado Emanuel». Jesus é Deus connosco porque Maria é também connosco, da mesma natureza, comungando a debilidade da nossa carne, mas preservada por Deus do pecado original para acolher no seu seio o Verbo eterno do Pai.

Mas este desígnio salvífico de Deus que passa através de Maria não é um mero pré-determinismo, não é um evento que se coloque na agenda para nos recordar que irá acontecer; Maria foi sempre, até ao fim, inteiramente livre. Maria poderia ter rejeitado a proposta de Gabriel, poderia ter sido discípula sem ter sido mãe, poderia ter vivido a rotina normal de uma esposa sem se consagrar plenamente ao Senhor. Poderia, mas não o fez! Porque Maria é uma mulher de fé, para quem o «Sim» a Deus é mais que um dever, é uma obrigação assumida em plena liberdade, cujas consequências vão para lá de uma atitude meramente exterior e de tempos cronologicamente bem definidos!

Neste tempo do Advento e do Natal, Maria constitui o grande sinal do que acontece a quem vive segundo a fé. Como Mãe, gera a Cristo no seu seio; como discípula, gera a Cristo no seu coração. Como Mãe, dá à luz o Deus Connosco (o Emanuel), como discípula ensina-nos a conceber o «Deus em nós». Este é o itinerário de fé que Nossa Senhora nos propõe nestes dias que faltam até à celebração do Natal do Senhor: que o «Sim» seja um princípio normativo das nossas opções diante da vontade divina, a fim de que o nosso coração se torne um útero da «Palavra» que faça Cristo germinar, encarnar e actuar na nossa vida. A este propósito diz Santo Agostinho: «Maria cumpriu, e cumpriu perfeitamente, a vontade do Pai; e, por isso, Maria tem mais mérito por ter sido discípula de Cristo do que por ter sido mãe de Cristo. Maria era bem-aventurada porque antes de dar à luz o Mestre, trouxe-O no seu seio. Maria era feliz porque ouviu a palavra de Deus e a pôs em prática; guardou mais a verdade de Cristo na sua mente do que o corpo de Cristo no seu seio».

Rezemos com Maria e como Maria para que se faça em nós segundo a Palavra do Senhor, e a obra da salvação continue através do nosso testemunho, sinal visivel de que Deus continua a ser «Emanuel», Deus Connosco, e a realidade da Encarnação encontre na sacramentalidade da Igreja o prolongamento histórico deste mistério vivido há 2 mil anos através das sagradas entranhas da Virgem Santa Maria. Só quando Jesus deixar de ser um evento exterior para se tornar um hóspede interior do coração é que acontece verdadeiramente Natal; é esse o processo de fé que em Maria vemos espelhado como virtude a imitar, a acolher, a desejar!


sábado, 9 de dezembro de 2017

João Baptista: figura da preparação


(S. João Baptista, da autoria de Caravaggio - Musei Capitolini, Roma)

O Evangelho segundo S. Lucas traça um paralelo nada ingénuo entre João Baptista e Jesus: duas anunciações angélicas de cariz extraordinário, dois nascimentos de forma inesperada (uma de forma extraordinária, porque de uma estéril de idade avançada, outro de forma miraculosa, porque de uma virgem), duas missões complementares (João como voz, Jesus como Palavra). O ministério de Jesus não pode ser interpretado sem a necessária alusão a João Baptista, por quem Ele se deixou baptizar.

João Baptista, em contexto de advento, não é apenas uma figura de charneira entre o Antigo e o Novo Testamento, que encarna uma certa radicalização da apocalíptica judaica. João é «o maior entre os filhos de mulher» (Mt 11,11), tão grande que a Igreja sentiu necessidade de celebrar solenemente o seu nascimento (24 de Junho). Mas a sua grandeza deriva da sua profunda humildade, como nos recorda o evangelho deste domingo («Vai chegar depois de mim quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar para desatar as correias das suas sandálias» (Mc 1,7).

João assume-se como um duplo sinal: sinal de que de facto o «Verbo incarnou» no seio de Maria, e ainda no seio de sua mãe Isabel exulta de alegria perante a presença embrionária do Messias (no fundo, João constitui a verdadeira ecografia de Maria, sinal da veracidade do anúncio de Gabriel); e sinal porque testemunha da presença («Eis o Cordeiro de Deus») e do modus vivendi de Jesus («É necessário que Ele cresça e eu diminua»). João é figura da preparação porque sabe o que é ser testemunha/mártir: deixar que Outro seja nele, apagando-se para que outro possa brilhar. João Baptista tinha discípulos que o seguiam, alguns até pensavam que ele seria o Messias. O Precursor poderia ser tentado a assumir-se como tal, ganhando protagonismo e o reconhecimento das multidões. Mas não o faz. Porque João é voz; e a voz é apenas um instrumento para que a Palavra ganhe corpo. O Baptista é a voz que clama, mas é Jesus a Palavra, não só dita como Incarnada. 

Neste sentido, João Baptista completa a profecia de Isaías. São duas figuras que se complementam: o que em Isaías é esperança, em João Baptista torna-se preparação, porque iminência. O que Isaías vislumbrava de forma remota e longínqua, João Baptista observa embrionariamente, reconhece como já presente, e prepara a irrupção de Deus no mundo em Jesus, saindo de cena. Eis o grande convite e testemunho de João Baptista como figura da preparação, não só em palavras mas sobretudo em actos: o advento é o tempo em que somos desafiados a saír de cena, a deixar o protagonismo Àquele que quer nascer para nós e em nós. Só assim o advento se torna fecundo e verdadeira preparação da contínua vinda de Jesus à nossa vida.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Isaías: figura da esperança


(Pintura: «Isaías», da autoria de Rafael, Igreja de Santo Agostinho - Roma)

Após ter feito a proposta de uma leitura bíblica continuada, que sem casualidade começa com a leitura da profecia de Isaías, decidi reflectir um pouco sobre quatro grandes figuras do advento, uma em cada semana, que a própria liturgia faz menção na Palavra proclamada.

A primeira dessas figuras é Isaías. Este é o primeiro dos chamados «profetas maiores». O seu livro possui um total de 66 capítulos (o maior em toda a Bíblia), mas no fundo são três livros:
  • O Proto-Isaías (Is 1-39)
  • O Deutero-Isaías (Is 40-55)
  • O Trito-Isaías (Is 56-66)
O Proto-Isaías (o único que remonta ao tempo de Isaías ou da sua escola, cerca de 756 a.C.) é aquele que neste momento mais nos interessa na relação do profeta com o tempo do Advento. Isaías é um homem de Jerusalém, nascido numa família alargada, tendo tido vários filhos e frequentado os círculos próximos dos «sábios» e dos «funcionários reais». A sua vocação profética (Is 6), descrita em ambiente de verdadeira corte celeste e uma 'visão' da glória de Deus, mostra-nos como a realidade cultual do Templo lhe era próxima. Ao mesmo tempo, ela constitui um espelho da consciência do profeta acerca da santidade divina, aspecto nevrálgico na sua mensagem que o leva à constatação do fosso que o povo eleito foi criando em relação ao seu Deus.

A 1ª parte do livro (Is 1-12) é fundamentalmente constituída por oráculos, visões e poemas que fazem eco da situação religiosa e política do seu tempo. As suas descrições, carregadas de um realismo que muitas vezes se aproxima da desolação, são marcadas por grande severidade. Isaías, um verdadeiro visionário, interpreta a situação de exílio e constantes invasões estrangeiras do território israelita como uma consequência das infidelidades do povo. Porém, como verdadeiro profeta, este não se deixa 'alienar' pela situação negativa do presente, mas como paradigma da esperança antecipa a manifestação plena do Senhor e a instauração de um novo reino de paz, onde até «as nações» (e não só os judeus) são acolhidas e conduzidas ao Senhor do universo (Is 2,2). Isaías reactiva, deste modo, o messianismo davídico (ou real), que acelera esta certeza de que Deus enviará um «Ungido» que dará ao seu povo o domínio universal, e ao mundo inteiro a prosperidade e a paz.

É este simbolismo messiânico, de espera e expectativa, contraposto a um povo «que não vê nem ouve», que fez de Isaías uma figura da esperança neste tempo do advento. Várias são as referências, directas ou indirectas, que uma leitura cristã de Isaías vislumbrou como anúncio profético de Cristo, e que a Tradição consubstanciou na práxis litúrgica, nomeadamente nos textos que dão corpo à liturgia do Advento e do Natal:

Is 1,3: «O boi conhece o seu dono, e o jumento a manjedoura do seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer, meu povo não é capaz de entender».

Is 7,14: «O Senhor mesmo vos dará um sinal: Eis que a donzela está grávida e dará à luz um filho, e dar-lhe-ão o nome de Emanuel».

Is 9,1-6: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria [...] Porque um Menino nasceu para nós, um filho nos foi dado».

Is 11,1-9: «Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes [...]».

Que com Isaías não sejamos meros «profetas da desgraça», mas no realismo de quem vê a realidade com a fé que capacita o nosso olhar para além da superficialidade, nos apresentemos como sinalizadores de esperança numa sociedade carregada de pessimismo.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Leitura bíblica para o Tempo do Advento


A Bíblia num ano – uma proposta de leitura contínua

Tempo de Advento – 1ª semana
Sábado
Isaías 1-2
Domingo
Isaías 3-5
Segunda-feira
Isaías 6-7
Terça-feira
Isaías 8-9
Quarta-feira
Isaías 10-12
Quinta-feira
Isaías 13-14
Sexta-feira
Isaías 15-17
Sábado
Isaías 18-20
Tempo de Advento – 2ª semana
Domingo
Isaías 21-22
Segunda-feira
Isaías 23-24
Terça-feira
Isaías 25-27
Quarta-feira
Isaías 28-29
Quinta-feira
Isaías 30-31
Sexta-feira
Isaías 32-33
Sábado
Isaías 34-35
Tempo de Advento – 3ª semana
Domingo
Isaías 36-39
Segunda-feira
Isaías 40-41
Terça-feira
Isaías 42-43
Quarta-feira
Isaías 44-45
Quinta-feira
Isaías 46-47
Sexta-feira
Isaías 48-49
Sábado
Isaías 50-51
Tempo de Advento – 4ª semana
Domingo
Isaías 52-54
Segunda-feira
Isaías 55-57
Terça-feira
Isaías 58-59
Quarta-feira
Isaías 60-61
Quinta-feira
Isaías 62-63
Sexta-feira
Isaías 64-65
Sábado
Isaías 66

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

«Peregrinações», de José Keating



A mera verbalização da palavra 'peregrinação' desperta espontaneamente em mim sentimentos tão amplos que vão desde a saudade (das que fiz) ao desejo/sonho (de voltar a fazer). Por isso mesmo, qualquer coisa que me possa ajudar a aprimorar quer os conhecimentos quer a minha espiritualidade peregrina entusiasmam-me e fazem-me voltar a sentir aquele arrepiozinho na pele que se tem quando se vive a ansiedade de um momento. Tendo a saudade de peregrinar tomado conta de mim, pensei poder «peregrinar» ao ritmo das letras, das frases, parágrafos e capítulos de José Keating, que exprime em primeira pessoa a sua experiência peregrina no livro «Peregrinações». Confesso que esperava mais da obra, mas peregrinar é também isto: arriscar, mesmo que o caminho frustre as expectativas. Mas mesmo que estas saiam defraudadas, há sempre um 'algo' que acrescenta qualquer coisa ao já adquirido. É nesse sentido que aqui partilho algumas das frases que me enriqueceram no que respeita à espiritualidade da peregrinação... seja a das rotas pré-definidas seja a da descoberta da (nossa) própria vida:

- «Ai de quem não peregrinar! É tão fácil pensar que se conhece a vida porque o mundo nos entra em casa pelo poder de um comando à distância. Mas ir ao encontro do mundo é outra coisa. É também arriscar-se ao desencontro que, despojando-nos das nossas seguranças, nos prepara para encontros mais profundos. Peregrinar é uma arte. Muitos andam por aí e até talvez façam peregrinações, mas nem todos gozam dessa arte de estar no mundo indo para além do mundo» (Prefácio, Vasco Pinto Magalhães).

- «O sossego vem ao andar, vem ao sair em direcção à luz, ao sol nascente. O turista, porém, não sossega, apenas evita ou trata o seu cansaço e sonha sempre com o regresso ao seu sofá para se enterrar lá. O peregrino também se senta no sofá, mas como pobre. Relê a vida e está reconhecido a alguém. Não anota as suas vitórias com um "V" de "visto", porque tem a certeza de que, mesmo repetido o itinerário, há toda uma novidade: pode ir mais além e mais fundo» (Prefácio, Vasco Pinto Magalhães).

- «Falando de peregrinações, alguém me garantiu que Soren Kierkegaard teria descrito três tipos de Peregrinação: a peregrinação ética, na qual o peregrino procura resistir a vários tipos de cansaço e cumprir todas as tarefas que inevitavelmente surgem pelo caminho; a peregrinação estética, na qual o peregrino procura disfrutar as eventuais belezas e pontos de interesse do trajecto; e, finalmente, a peregrinação religiosa, na qual o peregrino procura encontrar uma forma de conhecimento de si próprio e de construção pessoal». 

- «As cenas interiores têm também a ver com algumas outras caminhadas e outros encontros que, então, não pareceram, não foram sentidos como peregrinação, cujo aspecto peregrino apenas se tronou claro em retrospecto, ao tentar descrever esta "peregrinação oficial": Ah!, aquela outra caminhada era, pois, peregrinar..., aquele encontro, aquela conversa com aquela pessoa eram peregrinar... Tudo o que tem aspecto de mudança, de risco e de progresso, de esforço para atingir algo, de participação em empresa comum, pode bem ser peregrinar, principalmente se o alvo a atingir não for inteiramente definido em todos os seus pormenores e dimensões, implicando uma atitude de descoberta, de abertura à novidade de cada passo que se dá, de respeito pelo desconhecido, de interrogação, de inquietação [...] Imediatamente estes pontos de chegada se tornam pontos de interrogação, muitas vezes pontos de partida, não sabemos ao certo para onde... Desafio, vórtice aberto ao infinito, ao indeterminado, ao interrogativo. Nestes pontos de chegada e de partida, o sentir das gentes, da tribo humana, descreve muitas vezes a quebra de barreira entre este nosso mundo material e natural, habitual, e uma outra realidade, apelidada de sobrenatural».

- «Conhecer Deus!... Se estes possíveis santos têm razão, tal conhecimento não deve ser coisa tão difícil como parece, pois, de outro modo, não seria proposto à generalidade dos homens. Mas essa não-dificuldade é, na verdade, difícil de entender. A proximidade de Deus é uma coisa não muito difícil de explanar, mas terrivelmente, assustadoramente difícil de intuir, de viver, de comunicar, de deixar crescer dentro de nós em espírito e verdade. Por outro lado, a presença de Deus é, para muita gente, e talvez para todos, impossível de evitar e assume até uma dimensão de perseguição».

- «[...] apesar das dores lombares e dos espasmos musculares, do desgosto e da desilusão comigo mesmo por ter encontrado alguns dos meus limites físicos e de estes limites poderem bem ser alusão ou sinal e sintoma de outros limites, apesar dos relâmpagos dos flashs e do cansaço, através de tudo isso, ou quem sabe se por causa disso mesmo, e através da substância e da realidade material de todos esses fenómenos, fui inesperadamente assaltado pela muito viva sensação de que "ali me esperava Alguém, que eu bem sabia que me esperava", e que dava um certo sentido a tudo aquilo... ainda que esse sentido não fosse claro ou explícito, ou mesmo lógico e racional».
José Keating 


domingo, 26 de novembro de 2017

Cristo Rei ou... Cristo Pobre?!


Diz S. Paulo: «Jesus Cristo, sendo rico, fez-Se pobre, para nos enriquecer na Sua pobreza» (2Cor 8,9). Esta pode muito bem ser uma chave de leitura da solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. A lógica «real» do Evangelho não é lógica do triunfalismo, mas é a lógica do serviço, da «kénosis» do Filho de Deus, o total esvaziamento da Sua majestade para manifestar a plena condescendência com a natureza humana.

O Papa Francisco instituiu uma Jornada a que intitulou o «Dia Mundial dos Pobres», cuja celebração decorreu na semana passada. Mas esse dia poderia muito bem coincidir com a solenidade que hoje festejamos. Porque a verdadeira realeza de Jesus, e o Reino de Deus que Jesus anuncia (basileia tou Theou, ou seja, a soberania de Deus), são sempre enquadrados na óptica da pobreza evangélica que o Filho de Deus assumiu, testemunhou e convidou a viver. Claro que o Santo Padre pensava naqueles que vivem uma «pobreza social», fruto das injustiças de uma sociedade 'cega', egoísta e capitalista, cujo «economocentrismo» retirou a pessoa humana do centro das prioridades. A Igreja desde sempre assumiu a sua 'opção preferencial pelos pobres', e disso é ilustrativo quer a vida de Jesus quer o testemunho das primeiras comunidades primitivas. No entanto, não é apenas a esta 'pobreza' que Jesus alude, mas à «pobreza humana», aquela que experimentamos enquanto seres humanos.

A pobreza está no âmago do anúncio do Reino de Deus: «Bem aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (Mt 5,3). Os pobres são prioridade no conteúdo programático do ministério de Jesus: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres...» (Lc 4,18). É por isso que não se pode compreender a pessoa de Cristo-Rei sem este background neotestamentário. A realeza de Jesus é reconhecida nos momentos em que Aquele se despoja radicalmente da Sua divindade (ainda que sem a perder). Jesus nasce como pobre, em Belém, e aí é reconhecido como Rei por parte dos Magos (a oferta de ouro a isso alude); Jesus morre pobre, humilhado e abandonado, com uma inscrição a dizer «Jesus Nazareno, Rei dos judeus». Aliás, não deixa de ser paradigmático que as leituras dos evangelhos da solenidade do Cristo-Rei nos seus três ciclos de leituras se refiram a Jesus nesta condição de pobreza: a identificação com os mais desfavorecidos e desprotegidos (Mt 25,31-46), o diálogo com Pilatos em que na fragilidade de um condenado afirma a Sua condição real (Jo 18,33b-37) e o momento da morte em que manifesta a força da misericórdia num contexto de extrema penúria e sofrimento (Lc 23,35-43). 

Ou seja, celebrar Cristo-Rei significa celebrar Cristo-Pobre. Neste célebre capítulo 25 de S. Mateus, Jesus identifica-Se com os famintos, os sedentos, os peregrinos, os «sem roupa», os doentes e os presos. Todos estes não são apenas uma imagem de Cristo, são «Cristo» verdadeiramente, no realismo da Sua carne. Esta identificação de Cristo surge igualmente na vocação de Paulo a caminho de Damasco, onde Jesus se identifica com os cristãos perseguidos: «Saulo, Saulo, porque Me persegues?» (Act 9,4). Assim como hoje a Igreja reconhece na pobreza do sacerdote um alter Christus, cuja fragilidade humana se coloca ao serviço da manifestação da graça divina. Ou então, para apresentar um exemplo ainda mais nítido: a realeza de Cristo 'velada' na pobreza material do pão e do vinho, presença real e substancial do Senhor Jesus. Mesmo que na história da Igreja se tenham feito tronos para que o «Rei» pudesse ser adorado, não deixa de ser verdade que essa realeza se exprime na 'pobreza' das espécies eucarísticas. 

Que Deus nos ajude a viver esta pobreza de espírito e de coração, para que aprendamos a reconhecer Cristo-Rei no realismo da pobreza humana, pois como salientou o Papa Francisco numa das suas audiências de quarta-feira: «Os pobres são a carne de Cristo (...).Tocar os pobres é tocar o corpo de Cristo». E assim também aprendamos a fazer da nossa pobreza lugar privilegiado para Deus poder «realizar-Se», anulando as pretensões de auto-suficiência que tantos de nós trazem no coração.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Mais papistas que o Papa... ou nem por isso!



Nos últimos tempos tem-se verificado uma certa divergência face aos métodos e estilo do Papa Francisco. É normal que isto suceda sempre que se dá uma mudança, seja ela qual for: para uns é vivida com entusiasmo, para outros com alguma relutância. A renúncia de Bento XVI e a eleição do Papa Francisco é apenas mais uma peripécia de entre as tantas que tão apaixonadamente têm sido vividas ao longo da história da Igreja.
Até aqui tudo bem. Posso perceber que se sinta uma simpatia mais apurada em relação a um determinado Papa, que possa haver uma afinidade maior com o estilo de um do que com o estilo de outro. Tudo isso é aceitável. Já não o é aproveitar a antipatia para criar movimentos de ruptura, de absolutização e de extremismos. Não pode ser tolerável que um movimento «pro-Bento XVI» se torne em movimento «anti-Francisco», malgrado a discordância que se possa ter em relação a alguns aspectos. Menos honesto é apelar a um «Papocentrismo» (em que tudo o que o Papa diz é dogma) quando convém e desvincular-se dele quando não convém. 
Assim, o ministério do Papa, em vez de fomentar aquilo para o qual este ministério existe, ou seja, a comunhão da Igreja, acaba por criar cisões e divergências, extremando uma questão de simpatia/antipatia numa questão de vida ou morte, agudizando paixões e combates que em nada beneficiam a Igreja como sinal de comunhão. Por isso, esta ferida eclesial, que rompe com o desejo de Jesus de que todos sejamos um, levou-me a reflectir sobre este tema do ministério petrino.

Podemos ter como ponto de partida uma afirmação contida no Decreto Christus Dominus, do Concílio Vaticano II. Eis o texto:

«Nesta Igreja de Cristo, o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, a quem Cristo mandou que apascentasse as suas ovelhas e os seus cordeiros, está revestido, por instituição divina, de autoridade suprema, plena, imediata e universal, em ordem à cura das almas. Portanto, uma vez que foi enviado como pastor de todos os fiéis, para promover o bem comum da Igreja Universal e o bem de cada uma das Igrejas, tem a supremacia do poder ordinário sobre todas as Igrejas» (CD, 11).

            No parágrafo supracitado encontramos o cerne da questão. Convém frisar que o ministério papal, enquanto realização do ministério de Pedro, não é uma realidade que brota de uma vontade meramente humana, mas faz parte do projecto salvífico de Deus para a humanidade. É um serviço que se fundamenta no próprio querer de Deus, e cujos ecos vislumbramos de modo concreto nas palavras do próprio Jesus. Por isso, chame-se ele João Paulo II, Bento XVI ou Francisco, é o mesmo mistério a acontecer.
            Não há que ter medo de o assumir: o ministério do Papa conserva o ministério do apóstolo Pedro, mesmo que algumas circunstâncias históricas possam ter desfigurado esta realidade. Não se trata de absolutizar o poder pontifício numa dimensão de autoridade monologal e fechada ao restante Colégio Apostólico, mas antes reconhecer na figura do Papa o servus servorum Dei, como tão bem expressou S. Gregório Magno. Ele é o primeiro a testemunhar e a manter a especificidade da Igreja na sua dupla acção: comunhão e missão. Por isso, como nos aponta João Paulo II na sua encíclica Ut unum sint, o Bispo de Roma foi constituído por Deus como «perpétuo e visível fundamento da unidade» (UUS 88). A essência deste ministério reside fundamentalmente neste serviço à unidade da Igreja, a «communio ecclesiarum», pelo que falar do ministério de Pedro implica falar da acção da Igreja. Tudo o que podemos afirmar acerca do múnus papal deriva não dos atributos pessoais do sucessor de Pedro, mas da certeza da assistência do Espírito Santo à Igreja, que permite a continuidade da acção de Jesus na história.
            O lugar atribuído a Pedro está, por isso, fundado sobre as próprias palavras de Cristo, tal como são recordadas nas tradições evangélicas. Ao frisar a necessidade de uma conversão para poder confirmar os irmãos na fé, Jesus põe em evidência a fraqueza humana de Pedro. É por isso que só podemos entender o serviço petrino no horizonte mais amplo da Igreja, que está assente no poder infinito da graça. Deste modo, se o Papa é infalível, isso decorre da própria infalibilidade da Igreja; se o Papa é solícito por todas as Igrejas, essa realidade advém da solicitude da Igreja por todas as Igrejas particulares. O Papa nunca age em nome próprio, mas em prol da execução da missão da Igreja enquanto sacramento universal de salvação. Ainda no número 94 da Ut unum sint se diz que «o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos próprios interesses. Tem o dever de advertir, presumir e, por vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda – em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio Vaticano I – declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé. Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve a unidade» (UUS 94). O Bispo de Roma é, assim, a expressão visível da plena comunhão da Igreja, enquanto cabeça do Colégio Apostólico com quem forma uma unidade. Assim, em cada uma das Igrejas particulares confiadas aos Bispos realiza-se a Igreja una, santa, católica e apostólica. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro e, desse modo, na unidade de Cristo.
         O Papa é ainda apelidado como “Vigário de Cristo”, ou seja, é aquele que faz as vezes de Cristo (ainda que o termo mais correcto talvez fosse «Vigário de Pedro»). Mais uma vez, esta é uma realidade que brota do próprio mistério da Igreja enquanto presença da plenitude dos instrumentos de salvação, em que a acção da Igreja é sempre acção de Cristo. O serviço petrino é o serviço de Cristo, consubstanciado na passagem lucana «Eu estou no meio de vós como quem serve» (Lc 22, 27). É igualmente um serviço à misericórdia, que radica na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da sua fraqueza e miséria. Parafraseando, mais uma vez, João Paulo II, «a autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do desígnio misericordioso de Deus e há-de ser vista sempre nesta perspectiva. É que nela se explica o seu poder» (UUS 92). 
          Posto isto, urge recuperar o verdadeiro sentido da missão papal. O que conta é o ministério, não a pessoa. As comparações entre Papas são infrutíferas e infecundas, pois o que está em questão é o serviço da unidade e não da uniformidade: o extremismo de posições poderia conduzir a uma situação análoga àquela que Paulo encontrou em Corinto («Pois, quando alguém alega: “Eu sou de Paulo”, e outro “Eu sou de Apolo”, não estais agindo absolutamente segundo os padrões dos homens?», 1Cor 3,4). O «Papocentrismo» não é nem nunca será uma política desejada, sobretudo se toldar a nossa capacidade de reflexão (crítica) e esvaziar o nosso sentido de corresponsabilidade (sinodal/colegial). Para estar em (sincera) comunhão com o Papa não basta celebrar a mesma Eucaristia e acreditar nos mesmos dogmas; estar em comunhão significa partilhar e comungar os mesmos critérios e estilos de vida que o Papa sinaliza. O testemunho do Papa, além de infalível em matéria de fé e costumes, torna-se evangelho vivo e critério de discernimento. Não precisamos que o Papa promulgue leis que nos digam o que podemos e não podemos fazer, o que devemos e não devemos fazer, o que é aceitável e não é aceitável. O seu exemplo, palavra e estilo de vida, apesar da sua (humana) fragilidade, bastam para reconhecer o que é necessário para cada tempo, o que é novo e o que é velho, o que é relativo e o que é absoluto, o que deve desaparecer e o que deve permanecer. Mas mais do que tudo, seguimos o Papa porque nos apoiamos numa promessa: «Roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça» (Lc 22,32). Fiéis ao Papa, sim; mas sem ser papistas.


domingo, 12 de novembro de 2017

Celibato: sim ou não?



Começa hoje a semana de oração pelos Seminários, cujo lema é «Fazei o que Ele vos disser». Aproveitando esta realidade da vida da Igreja, uso este meio para reflectir e partilhar um pouco daquilo que tem vindo a ser a minha síntese teológica a partir da própria experiência pessoal de celibatário.

Celibato: sim ou não? Este tem sido um dos temas mais falados nos últimos tempos, e um argumento sempre muito contestado mas igualmente defendido pela Igreja como um dom a preservar. Várias vozes de levantam contra a «imposição» do celibato para os candidatos ao sacerdócio, defendendo um 'estatuto' igual aos demais na livre escolha do matrimónio. Mas o que está mesmo em questão quando se fala do celibato?

No dia da ordenação diaconal, momento em que nos tornamos clérigos e por isso com uma vocação de especial consagração, o bispo nos pergunta: «Vós, que estais preparados para abraçar o celibato, quereis, como sinal do vosso coração consagrado a Cristo Senhor, guardar perpetuamente este propósito por amor do Reino dos Céus, ao serviço de Deus e dos homens?». O candidato responde LIVREMENTE: «Sim, quero». 

A partir daqui gostaria de partilhar algumas reflexões. Em primeiro lugar, quero dizer que o celibato não é uma questão dogmática, mas disciplinar. Basta verificar que a Igreja de Rito Bizantino aceita o ministério sacerdotal exercido por homens casados, ainda que o mesmo não se aplique ao episcopado, onde é obrigatório ser-se celibatário. No entanto, mesmo aí o celibato é altamente aconselhável e não menosprezável. Daqui deriva que a preservação do celibato da Igreja latina como condição para o sacerdócio se deve a uma consciência do dom que ele reveste para as comunidades e para a indivisibilidade de coração que se deseja num sacerdote. 

Em segundo lugar, nunca houve na Tradição eclesial o hábito de permitir aos padres que casem, mas antes ordenar homens casados. Essa é a prática da Igreja do Oriente e a proposta que muitos hoje fazem como forma de contrariar o natural défice de vocações em algumas regiões do Globo. No entanto, por detrás desta proposta aparecem muitas tendências funcionalistas, que tendem a esvaziar o sentido da vocação propriamente divina: tornar-se-ia uma forma «rápida e eficaz» de fazer face a um problema real mas que abalaria a dimensão «ontológica» que reveste o carácter sacerdotal. Deste modo, alguns postulam que deveriam ser as comunidades cristãs a escolher homens idóneos, maduros e consensuais para ser apresentado como candidato ao sacerdócio e assim poder celebrar Eucaristia e perdoar os pecados até que a crise de vocações cessasse. Creio que esta via não se coaduna com aquela dimensão sobrenatural que preside a cada chamamento, nem sequer satisfaz as exigências de liberdade e de perpetuidade que a teologia sempre defendeu ao enunciar a questão do «carácter indelével» que assinala para sempre os que se configuram a Cristo no sacramento da Ordem. O modo de apresentar a questão parece igualmente reduzir o ministério presbiteral aos sacramentos e introduzir uma espécie de limite 'espacial' para o exercício da missão.

Em terceiro lugar, quero recordar que o celibato nem sempre constituiu uma condição sine qua non para aceder ao sacerdócio, mas foi sendo amadurecido e proposto a partir da reflexão da Igreja, das exigências pastorais cada vez maiores e, naturalmente, de um entendimento mais claro da radicalidade evangélica promovida por Jesus. Ao percorrer as páginas do Evangelho verificamos que uma das condições, senão a maior das condições, para seguir Jesus era o «deixar tudo». Sabemos que Pedro tinha esposa, pois se faz referência à sua sogra (Lc 4,38); o mesmo aconteceu provavelmente com a grande maioria dos apóstolos, que por obediência ao projecto de Jesus, abdicaram de tudo para O seguir. O mesmo Jesus enaltece este estilo de vida em Mt 19,12, quando afirma que «há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus». Ou seja, mesmo sem ser uma realidade obrigatória, o celibato é um estado de vida valorizado e apreciado, e em Jesus colocado como exigência para alguns (que, no entanto, têm liberdade de aceitar ou não, pois Jesus não o impõe).

Em quarto lugar, o celibato é exercido em liberdade e requer, isso sim, maturidade humana e afectiva. Dizer que o padre é «obrigado» ao celibato é uma terminologia errada, já que a resposta do candidato é: «Sim, quero». Ou seja, os anos de seminário servem para amadurecer a pessoa nas diferentes dimensões (humana, afectiva, sexual, espiritual, etc) a fim de que esta se sinta conscientemente preparada para abraçar o celibato e desejar, de forma livre, fazer dele o seu estado de vida. A mesma analogia se pode fazer para o matrimónio: ninguém obriga a pessoa X a casar com a pessoa Y, é a união de duas vontades que se concretiza na celebração de um sacramento (o matrimónio) apoiado na unidade, indissolubilidade e fidelidade. E esse compromisso feito de forma livre e segundo a vontade dos nubentes, sem coacção de terceiros. No entanto, isso não significa que posteriormente as coisas não resultem e tenham que vir a separar-se; porém, não se coloca em causa a liberdade com que assumiram o compromisso e tomaram consciência das suas responsabilidades e exigências. A mesma comparação pode ser feita com o voto de celibato dos padres. 

Em quinto lugar, é demasiado redutor cingir o argumento do celibato a um «reducionismo fisicista» (ou biológico). Ou seja, um dos argumentos que mais sobressaem na oposição ao celibato dos padres é a impossibilidade de responder aos impulsos ditos sexuais que cada ser humano tem. Porém, a maturidade humana exige que levemos a sério várias virtudes tipicamente cristãs, como o auto-domínio ou a prudência, que tanto vale para os padres como para os casais que vivem em matrimónio. E esta continência a que os padres são chamados não se trata de um «heroísmo» supra-humano, mas de uma realidade tornada possível pela acção do Espírito Santo que sempre nos anima e fortalece. O que está verdadeiramente em causa é a vivência plena do amor, de um coração indiviso que manifesta de várias formas a dimensão oblativa da vida a que é chamado. É o amor que plenifica, que se assume como critério e forma de vida: no matrimónio manifesta-se na entrega total (física e espiritual) que os esposos fazem um ao outro, no sacerdócio manifesta-se na entrega total (física e espiritual) que o sacerdote faz de si mesmo para Deus e para a Igreja. Querer ver no celibato o fundamento para os 'escândalos' de pedofilia e outros desvios morais por parte dos padres é uma extrapolação; usando o mesmo critério da analogia, como se explicam então situações semelhantes por parte de pessoas casadas e em número muito mais elevado?

Em quinto lugar, não deixa de ser tantas vezes paradoxal que as pessoas que mais se opõem ao celibato ou são aquelas que não precisam dos padres e por isso não se incomodam de ver um padre a ter um estilo de vida igual aos outros, ou são aquelas que mais tempo e dedicação exigem dos padres. Efectivamente, a conciliação de uma vida matrimonial e sacerdotal seria uma dificuldade, mais que uma solução. Traria ao sacerdote dificuldade em definir prioridades, em conciliar o natural cuidado da vida familiar com a dedicação total às comunidades a que preside; poderia ainda torná-lo numa espécie de «funcionário do sagrado» que não faz parte da nossa Tradição católica romana, entre outras questões que agora me escuso de mencionar.

Como bom cristão católico, não absolutizo a minha opinião. Sou obediente à Igreja e aceito qualquer reflexão honesta e fundamentada que se possa fazer, mesmo que isso acarrete a mudança de paradigmas vigentes. A questão do celibato pode ser mudada? Pode, claro que pode. Mas eu, na minha liberdade, escolho ser celibatário. Creio que continuam a fazer sentido as reflexões de grande teor teológico feitas pelo Papa Paulo VI na sua encíclica Sacerdotalis Caelibatus. Aí afirma o Santo Padre que o celibato deve ser visto em três perspectivas:

  • Cristológica - o celibato como estado de vida livremente escolhido por Jesus e que os sacerdotes procuram reproduzir escolhendo livremente o celibato como forma de vida;
  • Eclesiológica - o celibatário é imagem de Cristo Esposo, que tem a Igreja como esposa e por ela se entrega incondicionalmente, encontrando no celibato a forma de viver essa entrega de uma forma mais desprendida, disponível e total;
  • Escatológica - o celibatário antecipa e torna visível a eternidade a que todos somos chamados, fazendo da sua vida testemunho dessa realidade última em que «nem eles nem elas se dão em casamento».
Mas mais do que tudo, o celibato é um dom que a Igreja preserva desde há muito tempo e que deve amar e proteger. Aos cristãos e às famílias cabe a missão e a responsabilidade de ajudar a que possam ser amenizados alguns elementos inerentes ao celibato e que humanamente podem ser mais difíceis de viver, como a solidão. Temos uma Igreja a caminho, que será sempre assistida pelo Espírito Santo e saberá dar as melhores respostas às questões que se colocam em cada tempo. Estou convicto que isso acontece igualmente com a questão do celibato.