Nos últimos tempos tem-se verificado uma certa divergência face aos métodos e estilo do Papa Francisco. É normal que isto suceda sempre que se dá uma mudança, seja ela qual for: para uns é vivida com entusiasmo, para outros com alguma relutância. A renúncia de Bento XVI e a eleição do Papa Francisco é apenas mais uma peripécia de entre as tantas que tão apaixonadamente têm sido vividas ao longo da história da Igreja.
Até aqui tudo bem. Posso perceber que se sinta uma simpatia mais apurada em relação a um determinado Papa, que possa haver uma afinidade maior com o estilo de um do que com o estilo de outro. Tudo isso é aceitável. Já não o é aproveitar a antipatia para criar movimentos de ruptura, de absolutização e de extremismos. Não pode ser tolerável que um movimento «pro-Bento XVI» se torne em movimento «anti-Francisco», malgrado a discordância que se possa ter em relação a alguns aspectos. Menos honesto é apelar a um «Papocentrismo» (em que tudo o que o Papa diz é dogma) quando convém e desvincular-se dele quando não convém.
Assim, o ministério do Papa, em vez de fomentar aquilo para o
qual este ministério existe, ou seja, a comunhão da Igreja, acaba por criar
cisões e divergências, extremando uma questão de simpatia/antipatia numa questão de vida ou morte, agudizando paixões e combates que em nada beneficiam a Igreja como sinal de comunhão. Por isso, esta ferida eclesial, que rompe com o desejo de Jesus de que todos sejamos um, levou-me a reflectir sobre este tema do ministério petrino.
Podemos ter como ponto de partida uma
afirmação contida no Decreto Christus
Dominus, do Concílio Vaticano II. Eis o texto:
«Nesta Igreja de Cristo, o Romano
Pontífice, como sucessor de Pedro, a quem Cristo mandou que apascentasse as
suas ovelhas e os seus cordeiros, está revestido, por instituição divina, de
autoridade suprema, plena, imediata e universal, em ordem à cura das almas.
Portanto, uma vez que foi enviado como pastor de todos os fiéis, para promover
o bem comum da Igreja Universal e o bem de cada uma das Igrejas, tem a
supremacia do poder ordinário sobre todas as Igrejas»
(CD, 11).
No parágrafo supracitado encontramos
o cerne da questão. Convém frisar que o ministério papal, enquanto realização
do ministério de Pedro, não é uma realidade que brota de uma vontade meramente
humana, mas faz parte do projecto salvífico de Deus para a humanidade. É um
serviço que se fundamenta no próprio querer de Deus, e cujos ecos vislumbramos
de modo concreto nas palavras do próprio Jesus. Por isso, chame-se ele João Paulo II, Bento XVI ou Francisco, é o mesmo mistério a acontecer.
Não há que
ter medo de o assumir: o ministério do Papa conserva o ministério do apóstolo
Pedro, mesmo que algumas circunstâncias históricas possam ter desfigurado esta
realidade. Não se trata de absolutizar o poder pontifício numa dimensão de
autoridade monologal e fechada ao restante Colégio Apostólico, mas antes
reconhecer na figura do Papa o servus
servorum Dei, como tão bem expressou S. Gregório Magno. Ele é o primeiro a
testemunhar e a manter a especificidade da Igreja na sua dupla acção: comunhão
e missão. Por isso, como nos aponta João Paulo II na sua encíclica Ut unum sint, o Bispo de Roma foi
constituído por Deus como «perpétuo e visível fundamento da unidade» (UUS 88).
A essência deste ministério reside fundamentalmente neste serviço à unidade da
Igreja, a «communio ecclesiarum»,
pelo que falar do ministério de Pedro implica falar da acção da Igreja. Tudo o
que podemos afirmar acerca do múnus papal deriva não dos atributos pessoais do
sucessor de Pedro, mas da certeza da assistência do Espírito Santo à Igreja,
que permite a continuidade da acção de Jesus na história.
O lugar
atribuído a Pedro está, por isso, fundado sobre as próprias palavras de Cristo,
tal como são recordadas nas tradições evangélicas. Ao frisar a necessidade de
uma conversão para poder confirmar os irmãos na fé, Jesus põe em evidência a
fraqueza humana de Pedro. É por isso que só podemos entender o serviço petrino
no horizonte mais amplo da Igreja, que está assente no poder infinito da graça.
Deste modo, se o Papa é infalível, isso decorre da própria infalibilidade da
Igreja; se o Papa é solícito por todas as Igrejas, essa realidade advém da
solicitude da Igreja por todas as Igrejas particulares. O Papa nunca age em
nome próprio, mas em prol da execução da missão da Igreja enquanto sacramento
universal de salvação. Ainda no número 94 da Ut unum sint se diz que «o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão
de todas as Igrejas. Por este título ele é o primeiro entre os servidores da
unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância
sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão,
a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências
do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos
próprios interesses. Tem o dever de advertir, presumir e, por vezes, declarar
inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando
as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com
ele. Pode ainda – em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio
Vaticano I – declarar ex cathedra que
uma doutrina pertence ao depósito da fé. Ao prestar este testemunho à verdade,
ele serve a unidade» (UUS 94). O Bispo de Roma é, assim, a expressão visível
da plena comunhão da Igreja, enquanto cabeça do Colégio Apostólico com quem
forma uma unidade. Assim, em cada uma das Igrejas particulares confiadas aos
Bispos realiza-se a Igreja una, santa, católica e apostólica. Todas as Igrejas
estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão
com Pedro e, desse modo, na unidade de Cristo.
O Papa é ainda apelidado como “Vigário de Cristo”, ou seja, é
aquele que faz as vezes de Cristo (ainda que o termo mais correcto talvez fosse «Vigário de Pedro»). Mais uma vez, esta é uma realidade que brota
do próprio mistério da Igreja enquanto presença da plenitude dos instrumentos
de salvação, em que a acção da Igreja é sempre acção de Cristo. O serviço
petrino é o serviço de Cristo, consubstanciado na passagem lucana «Eu estou no
meio de vós como quem serve» (Lc 22, 27). É igualmente um serviço à
misericórdia, que radica na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os
corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da
sua fraqueza e miséria. Parafraseando, mais uma vez, João Paulo II, «a
autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do
desígnio misericordioso de Deus e há-de ser vista sempre nesta perspectiva. É
que nela se explica o seu poder» (UUS 92).
Posto isto, urge recuperar o verdadeiro sentido da missão papal. O que conta é o ministério, não a pessoa. As comparações entre Papas são infrutíferas e infecundas, pois o que está em questão é o serviço da unidade e não da uniformidade: o extremismo de posições poderia conduzir a uma situação análoga àquela que Paulo encontrou em Corinto («Pois, quando alguém alega: “Eu sou de Paulo”, e outro “Eu sou de Apolo”, não estais agindo absolutamente segundo os padrões dos homens?», 1Cor 3,4). O «Papocentrismo» não é nem nunca será uma política desejada, sobretudo se toldar a nossa capacidade de reflexão (crítica) e esvaziar o nosso sentido de corresponsabilidade (sinodal/colegial). Para estar em (sincera) comunhão com o Papa não basta celebrar a mesma Eucaristia e acreditar nos mesmos dogmas; estar em comunhão significa partilhar e comungar os mesmos critérios e estilos de vida que o Papa sinaliza. O testemunho do Papa, além de infalível em matéria de fé e costumes, torna-se evangelho vivo e critério de discernimento. Não precisamos que o Papa promulgue leis que nos digam o que podemos e não podemos fazer, o que devemos e não devemos fazer, o que é aceitável e não é aceitável. O seu exemplo, palavra e estilo de vida, apesar da sua (humana) fragilidade, bastam para reconhecer o que é necessário para cada tempo, o que é novo e o que é velho, o que é relativo e o que é absoluto, o que deve desaparecer e o que deve permanecer. Mas mais do que tudo, seguimos o Papa porque nos apoiamos numa promessa: «Roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça» (Lc 22,32). Fiéis ao Papa, sim; mas sem ser papistas.