terça-feira, 28 de novembro de 2017

Leitura bíblica para o Tempo do Advento


A Bíblia num ano – uma proposta de leitura contínua

Tempo de Advento – 1ª semana
Sábado
Isaías 1-2
Domingo
Isaías 3-5
Segunda-feira
Isaías 6-7
Terça-feira
Isaías 8-9
Quarta-feira
Isaías 10-12
Quinta-feira
Isaías 13-14
Sexta-feira
Isaías 15-17
Sábado
Isaías 18-20
Tempo de Advento – 2ª semana
Domingo
Isaías 21-22
Segunda-feira
Isaías 23-24
Terça-feira
Isaías 25-27
Quarta-feira
Isaías 28-29
Quinta-feira
Isaías 30-31
Sexta-feira
Isaías 32-33
Sábado
Isaías 34-35
Tempo de Advento – 3ª semana
Domingo
Isaías 36-39
Segunda-feira
Isaías 40-41
Terça-feira
Isaías 42-43
Quarta-feira
Isaías 44-45
Quinta-feira
Isaías 46-47
Sexta-feira
Isaías 48-49
Sábado
Isaías 50-51
Tempo de Advento – 4ª semana
Domingo
Isaías 52-54
Segunda-feira
Isaías 55-57
Terça-feira
Isaías 58-59
Quarta-feira
Isaías 60-61
Quinta-feira
Isaías 62-63
Sexta-feira
Isaías 64-65
Sábado
Isaías 66

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

«Peregrinações», de José Keating



A mera verbalização da palavra 'peregrinação' desperta espontaneamente em mim sentimentos tão amplos que vão desde a saudade (das que fiz) ao desejo/sonho (de voltar a fazer). Por isso mesmo, qualquer coisa que me possa ajudar a aprimorar quer os conhecimentos quer a minha espiritualidade peregrina entusiasmam-me e fazem-me voltar a sentir aquele arrepiozinho na pele que se tem quando se vive a ansiedade de um momento. Tendo a saudade de peregrinar tomado conta de mim, pensei poder «peregrinar» ao ritmo das letras, das frases, parágrafos e capítulos de José Keating, que exprime em primeira pessoa a sua experiência peregrina no livro «Peregrinações». Confesso que esperava mais da obra, mas peregrinar é também isto: arriscar, mesmo que o caminho frustre as expectativas. Mas mesmo que estas saiam defraudadas, há sempre um 'algo' que acrescenta qualquer coisa ao já adquirido. É nesse sentido que aqui partilho algumas das frases que me enriqueceram no que respeita à espiritualidade da peregrinação... seja a das rotas pré-definidas seja a da descoberta da (nossa) própria vida:

- «Ai de quem não peregrinar! É tão fácil pensar que se conhece a vida porque o mundo nos entra em casa pelo poder de um comando à distância. Mas ir ao encontro do mundo é outra coisa. É também arriscar-se ao desencontro que, despojando-nos das nossas seguranças, nos prepara para encontros mais profundos. Peregrinar é uma arte. Muitos andam por aí e até talvez façam peregrinações, mas nem todos gozam dessa arte de estar no mundo indo para além do mundo» (Prefácio, Vasco Pinto Magalhães).

- «O sossego vem ao andar, vem ao sair em direcção à luz, ao sol nascente. O turista, porém, não sossega, apenas evita ou trata o seu cansaço e sonha sempre com o regresso ao seu sofá para se enterrar lá. O peregrino também se senta no sofá, mas como pobre. Relê a vida e está reconhecido a alguém. Não anota as suas vitórias com um "V" de "visto", porque tem a certeza de que, mesmo repetido o itinerário, há toda uma novidade: pode ir mais além e mais fundo» (Prefácio, Vasco Pinto Magalhães).

- «Falando de peregrinações, alguém me garantiu que Soren Kierkegaard teria descrito três tipos de Peregrinação: a peregrinação ética, na qual o peregrino procura resistir a vários tipos de cansaço e cumprir todas as tarefas que inevitavelmente surgem pelo caminho; a peregrinação estética, na qual o peregrino procura disfrutar as eventuais belezas e pontos de interesse do trajecto; e, finalmente, a peregrinação religiosa, na qual o peregrino procura encontrar uma forma de conhecimento de si próprio e de construção pessoal». 

- «As cenas interiores têm também a ver com algumas outras caminhadas e outros encontros que, então, não pareceram, não foram sentidos como peregrinação, cujo aspecto peregrino apenas se tronou claro em retrospecto, ao tentar descrever esta "peregrinação oficial": Ah!, aquela outra caminhada era, pois, peregrinar..., aquele encontro, aquela conversa com aquela pessoa eram peregrinar... Tudo o que tem aspecto de mudança, de risco e de progresso, de esforço para atingir algo, de participação em empresa comum, pode bem ser peregrinar, principalmente se o alvo a atingir não for inteiramente definido em todos os seus pormenores e dimensões, implicando uma atitude de descoberta, de abertura à novidade de cada passo que se dá, de respeito pelo desconhecido, de interrogação, de inquietação [...] Imediatamente estes pontos de chegada se tornam pontos de interrogação, muitas vezes pontos de partida, não sabemos ao certo para onde... Desafio, vórtice aberto ao infinito, ao indeterminado, ao interrogativo. Nestes pontos de chegada e de partida, o sentir das gentes, da tribo humana, descreve muitas vezes a quebra de barreira entre este nosso mundo material e natural, habitual, e uma outra realidade, apelidada de sobrenatural».

- «Conhecer Deus!... Se estes possíveis santos têm razão, tal conhecimento não deve ser coisa tão difícil como parece, pois, de outro modo, não seria proposto à generalidade dos homens. Mas essa não-dificuldade é, na verdade, difícil de entender. A proximidade de Deus é uma coisa não muito difícil de explanar, mas terrivelmente, assustadoramente difícil de intuir, de viver, de comunicar, de deixar crescer dentro de nós em espírito e verdade. Por outro lado, a presença de Deus é, para muita gente, e talvez para todos, impossível de evitar e assume até uma dimensão de perseguição».

- «[...] apesar das dores lombares e dos espasmos musculares, do desgosto e da desilusão comigo mesmo por ter encontrado alguns dos meus limites físicos e de estes limites poderem bem ser alusão ou sinal e sintoma de outros limites, apesar dos relâmpagos dos flashs e do cansaço, através de tudo isso, ou quem sabe se por causa disso mesmo, e através da substância e da realidade material de todos esses fenómenos, fui inesperadamente assaltado pela muito viva sensação de que "ali me esperava Alguém, que eu bem sabia que me esperava", e que dava um certo sentido a tudo aquilo... ainda que esse sentido não fosse claro ou explícito, ou mesmo lógico e racional».
José Keating 


domingo, 26 de novembro de 2017

Cristo Rei ou... Cristo Pobre?!


Diz S. Paulo: «Jesus Cristo, sendo rico, fez-Se pobre, para nos enriquecer na Sua pobreza» (2Cor 8,9). Esta pode muito bem ser uma chave de leitura da solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. A lógica «real» do Evangelho não é lógica do triunfalismo, mas é a lógica do serviço, da «kénosis» do Filho de Deus, o total esvaziamento da Sua majestade para manifestar a plena condescendência com a natureza humana.

O Papa Francisco instituiu uma Jornada a que intitulou o «Dia Mundial dos Pobres», cuja celebração decorreu na semana passada. Mas esse dia poderia muito bem coincidir com a solenidade que hoje festejamos. Porque a verdadeira realeza de Jesus, e o Reino de Deus que Jesus anuncia (basileia tou Theou, ou seja, a soberania de Deus), são sempre enquadrados na óptica da pobreza evangélica que o Filho de Deus assumiu, testemunhou e convidou a viver. Claro que o Santo Padre pensava naqueles que vivem uma «pobreza social», fruto das injustiças de uma sociedade 'cega', egoísta e capitalista, cujo «economocentrismo» retirou a pessoa humana do centro das prioridades. A Igreja desde sempre assumiu a sua 'opção preferencial pelos pobres', e disso é ilustrativo quer a vida de Jesus quer o testemunho das primeiras comunidades primitivas. No entanto, não é apenas a esta 'pobreza' que Jesus alude, mas à «pobreza humana», aquela que experimentamos enquanto seres humanos.

A pobreza está no âmago do anúncio do Reino de Deus: «Bem aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (Mt 5,3). Os pobres são prioridade no conteúdo programático do ministério de Jesus: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres...» (Lc 4,18). É por isso que não se pode compreender a pessoa de Cristo-Rei sem este background neotestamentário. A realeza de Jesus é reconhecida nos momentos em que Aquele se despoja radicalmente da Sua divindade (ainda que sem a perder). Jesus nasce como pobre, em Belém, e aí é reconhecido como Rei por parte dos Magos (a oferta de ouro a isso alude); Jesus morre pobre, humilhado e abandonado, com uma inscrição a dizer «Jesus Nazareno, Rei dos judeus». Aliás, não deixa de ser paradigmático que as leituras dos evangelhos da solenidade do Cristo-Rei nos seus três ciclos de leituras se refiram a Jesus nesta condição de pobreza: a identificação com os mais desfavorecidos e desprotegidos (Mt 25,31-46), o diálogo com Pilatos em que na fragilidade de um condenado afirma a Sua condição real (Jo 18,33b-37) e o momento da morte em que manifesta a força da misericórdia num contexto de extrema penúria e sofrimento (Lc 23,35-43). 

Ou seja, celebrar Cristo-Rei significa celebrar Cristo-Pobre. Neste célebre capítulo 25 de S. Mateus, Jesus identifica-Se com os famintos, os sedentos, os peregrinos, os «sem roupa», os doentes e os presos. Todos estes não são apenas uma imagem de Cristo, são «Cristo» verdadeiramente, no realismo da Sua carne. Esta identificação de Cristo surge igualmente na vocação de Paulo a caminho de Damasco, onde Jesus se identifica com os cristãos perseguidos: «Saulo, Saulo, porque Me persegues?» (Act 9,4). Assim como hoje a Igreja reconhece na pobreza do sacerdote um alter Christus, cuja fragilidade humana se coloca ao serviço da manifestação da graça divina. Ou então, para apresentar um exemplo ainda mais nítido: a realeza de Cristo 'velada' na pobreza material do pão e do vinho, presença real e substancial do Senhor Jesus. Mesmo que na história da Igreja se tenham feito tronos para que o «Rei» pudesse ser adorado, não deixa de ser verdade que essa realeza se exprime na 'pobreza' das espécies eucarísticas. 

Que Deus nos ajude a viver esta pobreza de espírito e de coração, para que aprendamos a reconhecer Cristo-Rei no realismo da pobreza humana, pois como salientou o Papa Francisco numa das suas audiências de quarta-feira: «Os pobres são a carne de Cristo (...).Tocar os pobres é tocar o corpo de Cristo». E assim também aprendamos a fazer da nossa pobreza lugar privilegiado para Deus poder «realizar-Se», anulando as pretensões de auto-suficiência que tantos de nós trazem no coração.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Mais papistas que o Papa... ou nem por isso!



Nos últimos tempos tem-se verificado uma certa divergência face aos métodos e estilo do Papa Francisco. É normal que isto suceda sempre que se dá uma mudança, seja ela qual for: para uns é vivida com entusiasmo, para outros com alguma relutância. A renúncia de Bento XVI e a eleição do Papa Francisco é apenas mais uma peripécia de entre as tantas que tão apaixonadamente têm sido vividas ao longo da história da Igreja.
Até aqui tudo bem. Posso perceber que se sinta uma simpatia mais apurada em relação a um determinado Papa, que possa haver uma afinidade maior com o estilo de um do que com o estilo de outro. Tudo isso é aceitável. Já não o é aproveitar a antipatia para criar movimentos de ruptura, de absolutização e de extremismos. Não pode ser tolerável que um movimento «pro-Bento XVI» se torne em movimento «anti-Francisco», malgrado a discordância que se possa ter em relação a alguns aspectos. Menos honesto é apelar a um «Papocentrismo» (em que tudo o que o Papa diz é dogma) quando convém e desvincular-se dele quando não convém. 
Assim, o ministério do Papa, em vez de fomentar aquilo para o qual este ministério existe, ou seja, a comunhão da Igreja, acaba por criar cisões e divergências, extremando uma questão de simpatia/antipatia numa questão de vida ou morte, agudizando paixões e combates que em nada beneficiam a Igreja como sinal de comunhão. Por isso, esta ferida eclesial, que rompe com o desejo de Jesus de que todos sejamos um, levou-me a reflectir sobre este tema do ministério petrino.

Podemos ter como ponto de partida uma afirmação contida no Decreto Christus Dominus, do Concílio Vaticano II. Eis o texto:

«Nesta Igreja de Cristo, o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, a quem Cristo mandou que apascentasse as suas ovelhas e os seus cordeiros, está revestido, por instituição divina, de autoridade suprema, plena, imediata e universal, em ordem à cura das almas. Portanto, uma vez que foi enviado como pastor de todos os fiéis, para promover o bem comum da Igreja Universal e o bem de cada uma das Igrejas, tem a supremacia do poder ordinário sobre todas as Igrejas» (CD, 11).

            No parágrafo supracitado encontramos o cerne da questão. Convém frisar que o ministério papal, enquanto realização do ministério de Pedro, não é uma realidade que brota de uma vontade meramente humana, mas faz parte do projecto salvífico de Deus para a humanidade. É um serviço que se fundamenta no próprio querer de Deus, e cujos ecos vislumbramos de modo concreto nas palavras do próprio Jesus. Por isso, chame-se ele João Paulo II, Bento XVI ou Francisco, é o mesmo mistério a acontecer.
            Não há que ter medo de o assumir: o ministério do Papa conserva o ministério do apóstolo Pedro, mesmo que algumas circunstâncias históricas possam ter desfigurado esta realidade. Não se trata de absolutizar o poder pontifício numa dimensão de autoridade monologal e fechada ao restante Colégio Apostólico, mas antes reconhecer na figura do Papa o servus servorum Dei, como tão bem expressou S. Gregório Magno. Ele é o primeiro a testemunhar e a manter a especificidade da Igreja na sua dupla acção: comunhão e missão. Por isso, como nos aponta João Paulo II na sua encíclica Ut unum sint, o Bispo de Roma foi constituído por Deus como «perpétuo e visível fundamento da unidade» (UUS 88). A essência deste ministério reside fundamentalmente neste serviço à unidade da Igreja, a «communio ecclesiarum», pelo que falar do ministério de Pedro implica falar da acção da Igreja. Tudo o que podemos afirmar acerca do múnus papal deriva não dos atributos pessoais do sucessor de Pedro, mas da certeza da assistência do Espírito Santo à Igreja, que permite a continuidade da acção de Jesus na história.
            O lugar atribuído a Pedro está, por isso, fundado sobre as próprias palavras de Cristo, tal como são recordadas nas tradições evangélicas. Ao frisar a necessidade de uma conversão para poder confirmar os irmãos na fé, Jesus põe em evidência a fraqueza humana de Pedro. É por isso que só podemos entender o serviço petrino no horizonte mais amplo da Igreja, que está assente no poder infinito da graça. Deste modo, se o Papa é infalível, isso decorre da própria infalibilidade da Igreja; se o Papa é solícito por todas as Igrejas, essa realidade advém da solicitude da Igreja por todas as Igrejas particulares. O Papa nunca age em nome próprio, mas em prol da execução da missão da Igreja enquanto sacramento universal de salvação. Ainda no número 94 da Ut unum sint se diz que «o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos próprios interesses. Tem o dever de advertir, presumir e, por vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda – em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio Vaticano I – declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé. Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve a unidade» (UUS 94). O Bispo de Roma é, assim, a expressão visível da plena comunhão da Igreja, enquanto cabeça do Colégio Apostólico com quem forma uma unidade. Assim, em cada uma das Igrejas particulares confiadas aos Bispos realiza-se a Igreja una, santa, católica e apostólica. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro e, desse modo, na unidade de Cristo.
         O Papa é ainda apelidado como “Vigário de Cristo”, ou seja, é aquele que faz as vezes de Cristo (ainda que o termo mais correcto talvez fosse «Vigário de Pedro»). Mais uma vez, esta é uma realidade que brota do próprio mistério da Igreja enquanto presença da plenitude dos instrumentos de salvação, em que a acção da Igreja é sempre acção de Cristo. O serviço petrino é o serviço de Cristo, consubstanciado na passagem lucana «Eu estou no meio de vós como quem serve» (Lc 22, 27). É igualmente um serviço à misericórdia, que radica na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da sua fraqueza e miséria. Parafraseando, mais uma vez, João Paulo II, «a autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do desígnio misericordioso de Deus e há-de ser vista sempre nesta perspectiva. É que nela se explica o seu poder» (UUS 92). 
          Posto isto, urge recuperar o verdadeiro sentido da missão papal. O que conta é o ministério, não a pessoa. As comparações entre Papas são infrutíferas e infecundas, pois o que está em questão é o serviço da unidade e não da uniformidade: o extremismo de posições poderia conduzir a uma situação análoga àquela que Paulo encontrou em Corinto («Pois, quando alguém alega: “Eu sou de Paulo”, e outro “Eu sou de Apolo”, não estais agindo absolutamente segundo os padrões dos homens?», 1Cor 3,4). O «Papocentrismo» não é nem nunca será uma política desejada, sobretudo se toldar a nossa capacidade de reflexão (crítica) e esvaziar o nosso sentido de corresponsabilidade (sinodal/colegial). Para estar em (sincera) comunhão com o Papa não basta celebrar a mesma Eucaristia e acreditar nos mesmos dogmas; estar em comunhão significa partilhar e comungar os mesmos critérios e estilos de vida que o Papa sinaliza. O testemunho do Papa, além de infalível em matéria de fé e costumes, torna-se evangelho vivo e critério de discernimento. Não precisamos que o Papa promulgue leis que nos digam o que podemos e não podemos fazer, o que devemos e não devemos fazer, o que é aceitável e não é aceitável. O seu exemplo, palavra e estilo de vida, apesar da sua (humana) fragilidade, bastam para reconhecer o que é necessário para cada tempo, o que é novo e o que é velho, o que é relativo e o que é absoluto, o que deve desaparecer e o que deve permanecer. Mas mais do que tudo, seguimos o Papa porque nos apoiamos numa promessa: «Roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça» (Lc 22,32). Fiéis ao Papa, sim; mas sem ser papistas.


domingo, 12 de novembro de 2017

Celibato: sim ou não?



Começa hoje a semana de oração pelos Seminários, cujo lema é «Fazei o que Ele vos disser». Aproveitando esta realidade da vida da Igreja, uso este meio para reflectir e partilhar um pouco daquilo que tem vindo a ser a minha síntese teológica a partir da própria experiência pessoal de celibatário.

Celibato: sim ou não? Este tem sido um dos temas mais falados nos últimos tempos, e um argumento sempre muito contestado mas igualmente defendido pela Igreja como um dom a preservar. Várias vozes de levantam contra a «imposição» do celibato para os candidatos ao sacerdócio, defendendo um 'estatuto' igual aos demais na livre escolha do matrimónio. Mas o que está mesmo em questão quando se fala do celibato?

No dia da ordenação diaconal, momento em que nos tornamos clérigos e por isso com uma vocação de especial consagração, o bispo nos pergunta: «Vós, que estais preparados para abraçar o celibato, quereis, como sinal do vosso coração consagrado a Cristo Senhor, guardar perpetuamente este propósito por amor do Reino dos Céus, ao serviço de Deus e dos homens?». O candidato responde LIVREMENTE: «Sim, quero». 

A partir daqui gostaria de partilhar algumas reflexões. Em primeiro lugar, quero dizer que o celibato não é uma questão dogmática, mas disciplinar. Basta verificar que a Igreja de Rito Bizantino aceita o ministério sacerdotal exercido por homens casados, ainda que o mesmo não se aplique ao episcopado, onde é obrigatório ser-se celibatário. No entanto, mesmo aí o celibato é altamente aconselhável e não menosprezável. Daqui deriva que a preservação do celibato da Igreja latina como condição para o sacerdócio se deve a uma consciência do dom que ele reveste para as comunidades e para a indivisibilidade de coração que se deseja num sacerdote. 

Em segundo lugar, nunca houve na Tradição eclesial o hábito de permitir aos padres que casem, mas antes ordenar homens casados. Essa é a prática da Igreja do Oriente e a proposta que muitos hoje fazem como forma de contrariar o natural défice de vocações em algumas regiões do Globo. No entanto, por detrás desta proposta aparecem muitas tendências funcionalistas, que tendem a esvaziar o sentido da vocação propriamente divina: tornar-se-ia uma forma «rápida e eficaz» de fazer face a um problema real mas que abalaria a dimensão «ontológica» que reveste o carácter sacerdotal. Deste modo, alguns postulam que deveriam ser as comunidades cristãs a escolher homens idóneos, maduros e consensuais para ser apresentado como candidato ao sacerdócio e assim poder celebrar Eucaristia e perdoar os pecados até que a crise de vocações cessasse. Creio que esta via não se coaduna com aquela dimensão sobrenatural que preside a cada chamamento, nem sequer satisfaz as exigências de liberdade e de perpetuidade que a teologia sempre defendeu ao enunciar a questão do «carácter indelével» que assinala para sempre os que se configuram a Cristo no sacramento da Ordem. O modo de apresentar a questão parece igualmente reduzir o ministério presbiteral aos sacramentos e introduzir uma espécie de limite 'espacial' para o exercício da missão.

Em terceiro lugar, quero recordar que o celibato nem sempre constituiu uma condição sine qua non para aceder ao sacerdócio, mas foi sendo amadurecido e proposto a partir da reflexão da Igreja, das exigências pastorais cada vez maiores e, naturalmente, de um entendimento mais claro da radicalidade evangélica promovida por Jesus. Ao percorrer as páginas do Evangelho verificamos que uma das condições, senão a maior das condições, para seguir Jesus era o «deixar tudo». Sabemos que Pedro tinha esposa, pois se faz referência à sua sogra (Lc 4,38); o mesmo aconteceu provavelmente com a grande maioria dos apóstolos, que por obediência ao projecto de Jesus, abdicaram de tudo para O seguir. O mesmo Jesus enaltece este estilo de vida em Mt 19,12, quando afirma que «há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus». Ou seja, mesmo sem ser uma realidade obrigatória, o celibato é um estado de vida valorizado e apreciado, e em Jesus colocado como exigência para alguns (que, no entanto, têm liberdade de aceitar ou não, pois Jesus não o impõe).

Em quarto lugar, o celibato é exercido em liberdade e requer, isso sim, maturidade humana e afectiva. Dizer que o padre é «obrigado» ao celibato é uma terminologia errada, já que a resposta do candidato é: «Sim, quero». Ou seja, os anos de seminário servem para amadurecer a pessoa nas diferentes dimensões (humana, afectiva, sexual, espiritual, etc) a fim de que esta se sinta conscientemente preparada para abraçar o celibato e desejar, de forma livre, fazer dele o seu estado de vida. A mesma analogia se pode fazer para o matrimónio: ninguém obriga a pessoa X a casar com a pessoa Y, é a união de duas vontades que se concretiza na celebração de um sacramento (o matrimónio) apoiado na unidade, indissolubilidade e fidelidade. E esse compromisso feito de forma livre e segundo a vontade dos nubentes, sem coacção de terceiros. No entanto, isso não significa que posteriormente as coisas não resultem e tenham que vir a separar-se; porém, não se coloca em causa a liberdade com que assumiram o compromisso e tomaram consciência das suas responsabilidades e exigências. A mesma comparação pode ser feita com o voto de celibato dos padres. 

Em quinto lugar, é demasiado redutor cingir o argumento do celibato a um «reducionismo fisicista» (ou biológico). Ou seja, um dos argumentos que mais sobressaem na oposição ao celibato dos padres é a impossibilidade de responder aos impulsos ditos sexuais que cada ser humano tem. Porém, a maturidade humana exige que levemos a sério várias virtudes tipicamente cristãs, como o auto-domínio ou a prudência, que tanto vale para os padres como para os casais que vivem em matrimónio. E esta continência a que os padres são chamados não se trata de um «heroísmo» supra-humano, mas de uma realidade tornada possível pela acção do Espírito Santo que sempre nos anima e fortalece. O que está verdadeiramente em causa é a vivência plena do amor, de um coração indiviso que manifesta de várias formas a dimensão oblativa da vida a que é chamado. É o amor que plenifica, que se assume como critério e forma de vida: no matrimónio manifesta-se na entrega total (física e espiritual) que os esposos fazem um ao outro, no sacerdócio manifesta-se na entrega total (física e espiritual) que o sacerdote faz de si mesmo para Deus e para a Igreja. Querer ver no celibato o fundamento para os 'escândalos' de pedofilia e outros desvios morais por parte dos padres é uma extrapolação; usando o mesmo critério da analogia, como se explicam então situações semelhantes por parte de pessoas casadas e em número muito mais elevado?

Em quinto lugar, não deixa de ser tantas vezes paradoxal que as pessoas que mais se opõem ao celibato ou são aquelas que não precisam dos padres e por isso não se incomodam de ver um padre a ter um estilo de vida igual aos outros, ou são aquelas que mais tempo e dedicação exigem dos padres. Efectivamente, a conciliação de uma vida matrimonial e sacerdotal seria uma dificuldade, mais que uma solução. Traria ao sacerdote dificuldade em definir prioridades, em conciliar o natural cuidado da vida familiar com a dedicação total às comunidades a que preside; poderia ainda torná-lo numa espécie de «funcionário do sagrado» que não faz parte da nossa Tradição católica romana, entre outras questões que agora me escuso de mencionar.

Como bom cristão católico, não absolutizo a minha opinião. Sou obediente à Igreja e aceito qualquer reflexão honesta e fundamentada que se possa fazer, mesmo que isso acarrete a mudança de paradigmas vigentes. A questão do celibato pode ser mudada? Pode, claro que pode. Mas eu, na minha liberdade, escolho ser celibatário. Creio que continuam a fazer sentido as reflexões de grande teor teológico feitas pelo Papa Paulo VI na sua encíclica Sacerdotalis Caelibatus. Aí afirma o Santo Padre que o celibato deve ser visto em três perspectivas:

  • Cristológica - o celibato como estado de vida livremente escolhido por Jesus e que os sacerdotes procuram reproduzir escolhendo livremente o celibato como forma de vida;
  • Eclesiológica - o celibatário é imagem de Cristo Esposo, que tem a Igreja como esposa e por ela se entrega incondicionalmente, encontrando no celibato a forma de viver essa entrega de uma forma mais desprendida, disponível e total;
  • Escatológica - o celibatário antecipa e torna visível a eternidade a que todos somos chamados, fazendo da sua vida testemunho dessa realidade última em que «nem eles nem elas se dão em casamento».
Mas mais do que tudo, o celibato é um dom que a Igreja preserva desde há muito tempo e que deve amar e proteger. Aos cristãos e às famílias cabe a missão e a responsabilidade de ajudar a que possam ser amenizados alguns elementos inerentes ao celibato e que humanamente podem ser mais difíceis de viver, como a solidão. Temos uma Igreja a caminho, que será sempre assistida pelo Espírito Santo e saberá dar as melhores respostas às questões que se colocam em cada tempo. Estou convicto que isso acontece igualmente com a questão do celibato.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Os padres não podem pecar?



É gritante e evidente a forma manipuladora como a comunicação social se aproveita de notícias 'menores' para fazer uma espécie de «Caso de Inquisição». Sim, parece verdadeiramente um caso dessa realidade que tantos repudiam e acusam como uma vergonha histórica da Igreja, mas vista anacronicamente para explicar a sua aversão (ou indiferença) actual em relação a esta instituição.

Ora, esta semana temos assistido a uma verdadeira novela (para não lhe chamar outra coisa) em relação à paternidade biológica assumida por um sacerdote, fruto de um envolvimento (fortuito) com uma senhora. E logo se alçam vozes discordantes, ajuizadoras e intolerantes sobre a aparente desonestidade e indignidade do dito sacerdote para continuar a desempenhar o seu ministério presbiteral. Aí está o paradoxo: as vozes que se alçam para acusar a falta de caridade e misericórdia  da Igreja diante de algumas situações ditas 'irregulares' são as mesmas que se alçam para apelar à falta de caridade e misericórdia da Igreja para com este sacerdote. Esta autêntica novela ganha contornos de verdadeiro enredo através de chavões feitos mas sempre repetidos até à exaustão, aproveitando esta notícia para defender convicções pessoais e posições imadurecidas.

A pergunta que faço é esta: os padres não podem pecar?! A resposta parece óbvia. Mas importa aprofundar. Obviamente que os padres não devem pecar; assim como os cristãos não devem pecar! Vou mais longe: nenhum de nós quer pecar. É esse o propósito que fazemos sempre que nos confessamos. Mas a realidade que vivemos é outra: não devemos pecar, não queremos pecar... mas pecamos. Já diz S. Paulo: «sei o bem que quero e faço o mal que não quero» (Rom 7,19). Mas a pedagogia divina diz-nos que não devemos ficar amarrados a esse pecado; a misericórdia deve triunfar sobre os efeitos nefastos que o pecado provoca. A acção de Jesus consistiu em 'crucificar' o pecado para resgatar o pecador! Esta continua a ser a pedagogia da Igreja, quando no sacramento da Reconciliação o sacerdote, no momento da absolvição, diz: «Eu te absolvo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo!». E no fim pode acrescentar as palavras que Jesus pronunciou à mulher adúltera: «Vai e não tornes a pecar!» (Jo 8,11).

«Vai e não tornes a pecar!». É esta a frase chave. Não tornar a pecar. Eu não quero pecar, eu não devo pecar, mas peco! E reconheço esse erro. E assumo esse erro. Mas a misericórdia de Deus, mediante o nosso arrependimento e contrição, continua a dizer: «Vai e não tornes a pecar!». É provavelmente esta certeza de fé e este desejo de coração que fazem com que um sacerdote se possa erguer diante das suas quedas, que se possa levantar diante dos seus fracassos, que se possa recompor diante de um descuido. Porque não quer ficar afecto a esse pecado, porque pode não ficar afecto a esse pecado, porque «a misericórdia triunfa sobre o juízo» (Tg 2,13). Mas nós, padres, viveremos sempre paradoxalmente este limite de quem é olhado (e bem) como testemunha privilegiada de fidelidade: o perigo de não se perdoar a quem já tanto perdoou; o perigo de ser julgado por aqueles para quem foi o único a não julgar em determinada circunstância da vida dessa pessoa; o perigo de universalizar o particular em que os defeitos e pecados de um se tornam irremediavelmente os defeitos e os pecados de todos; o perigo de querer atribuir ao dom do celibato, escolhido voluntaria e livremente, a raíz de todos os problemas de natureza afectivo-sexual, sem usar os mesmos critérios e analogia para membros de casais que cometem (os mesmos) desvios morais e incumprimento da fidelidade (e em muito maior número)!

Como tão bem tem frisado o Papa Francisco, há que discernir cada situação no seu contexto! Adultério sempre haverá, mesmo que não o queiramos; infidelidade ao celibato sempre haverá, mesmo que o não desejemos. Mas o que Deus não quer verdadeiramente é que a nossa vida e a nossa vocação sejam postas em causa por um «acidente de percurso», seja no matrimónio seja no sacerdócio. Assumir o(s) erro(s) e os seus efeitos demonstra humildade, coragem e grandeza humana. Saber superá-lo(s) e reconciliá-lo(s) connosco já é dom e graça de Deus. Crucificar o pecado e 'revitalizar' o pecador - eis o desafio a cada um de nós. Pois já diz o Apóstolo: «quem és tu para julgar o próximo?» (Tg 4,12); ou o próprio Jesus: «Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra» (Jo 8,7). 

domingo, 5 de novembro de 2017

«Não digas uma coisa e faças outra» - ecos sábios da Palavra deste Domingo





NÃO DIGAS UMA COISA E FAÇAS OUTRA...

Confesso que todos somos fracos; mas o Senhor Deus pôs à nossa disposição os meios que, se quisermos, facilmente nos podem ajudar. Tal sacerdote desejaria adoptar a pureza de vida que lhe é exigida, ser casto e ter costumes angélicos, como é devido. Mas não se propõe lançar mãos dos meios para isso: jejuar, rezar, fugir de más conversas e de familiaridades perigosas.
Queixa se outro sacerdote de que, ao entrar no coro para salmodiar ou ao dispor se para celebrar missa, imediatamente lhe assaltam o espírito mil coisas que o distraem de Deus. Mas, antes de ir para o coro ou para a missa, que fazia ele na sacristia, como se preparou e que meios escolheu e empregou para concentrar a atenção?
Queres que te ensine como adiantar de virtude em virtude e, se já estiveste com atenção no coro, como estarás na vez seguinte ainda mais atento, para que o teu culto de louvor seja cada vez mais agradável a Deus? Ouve o que digo. Se já se acendeu em ti alguma centelha do amor divino, não queiras manifestá la imediatamente, não queiras expô la ao vento. Deixa o forno fechado, para não arrefecer e perder o calor. Evita as distracções na medida do possível. Conserva te recolhido com Deus e foge das conversas frívolas.
É tua missão pregar e ensinar? Estuda e consagra te a quanto é necessário para desempenhar devidamente esse ministério. Procura, antes de tudo, pregar com a tua própria vida e os teus costumes, para não acontecer que, vendo te dizer uma coisa e fazer outra, comecem a menear a cabeça e a troçar das tuas palavras.
Exerces a cura de almas? Não descures então o cuidado de ti próprio, para não te dares tão desinteressadamente aos demais que nada reserves para ti. Sem dúvida, é necessário que te lembres das almas que diriges, mas desde que te não esqueças de ti.
Compreendei, irmãos, que nada é tão necessário para todos os clérigos como a oração mental, que precede, acompanha e segue todas as nossas orações. Cantarei, diz o profeta, e meditarei. Se administras sacramentos, irmão, medita no que fazes; se celebras missa, pensa no que ofereces; se cantas no coro, considera a quem falas e o que dizes; se diriges almas, medita em que sangue foram purificadas. Tudo entre vós se faça com espírito de caridade. Assim poderemos vencer facilmente as inumeráveis dificuldades que inevitavelmente encontramos cada dia (formam parte do nosso ministério). Assim teremos força para fazer nascer Cristo em nós e nos outros.

(S. Carlos Borromeu, bispo de Milão)

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A «Irmã Morte» - entre o enigma e a certeza



Por muito que neguemos, apelando à fé cristã que dizemos possuír, a morte afigura-se-nos sempre com uma inevitável carga dramática, entre a ambiguidade ou a irreversibilidade. De facto, acreditar que Cristo ressuscitou e que nós com Ele e n'Ele ressuscitaremos torna-se apaziguador, mas nem por isso anula aquilo que é insegurança diante de um «desconhecido» que inevitavelmente todos teremos de conhecer. 
Ingenuamente, achamos que a realidade da morte sempre foi pacífica e entendida linearmente na Escritura Sagrada. Mas não é assim. No Antigo Testamento a ideia de uma vida depois da morte está pouco presente: a vida do povo de Israel foca-se fundamentalmente 'nesta vida' e no modo como a vivemos. Gn 25,8 recorda que Abraão morre «velho e saciado de dias», aceitando serenamente a morte após uma vida longa e feliz. Mesmo quando lemos que o justo, depois da morte, se junta aos seus pais (Gn 48,29), apenas se quer afirmar que será sepultado no mesmo local em que jazem os seus familiares. Efectivamente, na concepção israelita clássica a morte é o lugar da «não vida» (Sal 115,17-18), um regresso à terra da qual fomos tirados (Sal 90,3), onde ninguém pode louvar a Deus.
Também alguns textos, se não bem enquadrados historica e teologicamente, podem ser precipitadamente classificados como ilustrativos de uma vida depois da morte, anunciada ou já vivida. É o caso de  Ez 37, no famoso capítulo dedicado à revivificação dos ossos ressequidos. Porém, estas leituras, lidas em chave alegórica, pretendem situar o regresso do exílio como uma verdadeira 'ressurreição', uma passagem de uma realidade de trevas a uma realidade de luz. Os sepulcros que o Senhor declara abrir para o povo são uma imagem da permanência de Israel em terra estrangeira, na Babilónia, onde aquele pensa ter morrido enquanto povo. Nesta linha vai igualmente Isaías no capítulo 26 (vv.16-19), que categoricamente afirma: «Mas de novo viverão os teus mortos; os meus cadáveres ressurgirão».
A noção de imortalidade (da alma) começa a surgir apenas em textos mais tardios, por volta do século IV a.C., primeiro em literatura extra-bíblica e depois materializada nos textos ditos sapienciais. Claro que a noção de uma vida depois da morte, em que as almas dos bons são separadas das dos maus, encontra resistência nalguns livros inspirados. Qohelet propõe uma visão absolutamente negativa da vida depois da morte («tudo é ilusão», diz repetidamente, e «tudo é igual para todos: para o justo e para o malvado...»); Job mete em crise a doutrina da retribuição, pois vê-se confrontado, em 1ª pessoa, pela injustiça de um justo que sofre; Ben Sirá permanece ainda nesta visão de que a morte é o fim de tudo, ainda que sem a radicalidade de Qohelet: o que interessa é o usufruto pleno desta vida, pois quem não sabe saborear os bens penúltimos que Deus dá, não será capaz de saborear os bens últimos (Sir 14,12-19).
No entanto, subjaz sempre a ideia de que mesmo não sendo um conteúdo demasiado evidente, acredita-se que Deus é o Senhor da vida, e como tal deve sê-lo também no momento da morte, mesmo que a forma como isso se processa não seja visível. Só no 2º Livro dos Macabeus essa realidade se torna mais visível. Em tempo de perseguição (e martírio), a questão da justiça de Deus ganha novos contornos: se Deus é justo, é necessário que possa retribuir os seus fiéis também e sobretudo após a morte. É neste contexto da crise macabaica, nos finais do século II a.C., que começa a surgir de forma mais estruturada e incisiva a possibilidade de uma imortalidade que enquadre uma ressurreição dos corpos, aspecto que o livro da Sabedoria (século I) irá reforçar, como tão bem escutamos nas leituras dos funerais: «A vida dos justos está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá» (Sab 3,1ss).
Jesus situa-se nesta linha. Para Jesus, enquanto totalmente humano, a morte é uma realidade dramática. Ele chora pela morte de Lázaro e vive a agonia diante da eminência da morte. Mas na Sua ressurreição de entre os mortos, mostra-nos que o Deus da vida e do amor não pode permitir que a morte tenha a última palavra. Em Jesus e no Seu mistério pascal, o enigma da morte torna-se certeza, porque triunfo de Jesus. As Suas palavras tornam-se conforto e abrem-nos também o horizonte da vida: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá para sempre (Jo 6,51), «Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá» (Jo 11,25). Paulo insiste: «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, ainda estamos nos nossos pecados» (1Cor 15,14). E nós apoiamo-nos, ainda, na promessa que da boca de Jesus vem: «Hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc 23,43).

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

SER SANTO - ENTRE A REALIDADE E A UTOPIA




Hoje celebramos a Solenidade de Todos os Santos: os conhecidos e desconhecidos, os de devoção ou os sem nome. Mais do que um mero feriado com enraízadas tradições, com idas maciças ao cemitério (antecipando o dia 2) e o tradicional «Pão por Deus» (hoje em dia, transformado em tantos lugares num desfile carnavalesco de bruxas, fantasmas e demónios), a presente solenidade constitui para nós uma «pro-vocação». Celebrar Todos os Santos não é apenas «exultar de alegria no Senhor e entoar hinos e cantos» aos nossos intercessores, tornando mais visível esta união estreita entre a Igreja terrestre e a Igreja celeste, que ganha uma densidade própria na celebração da Eucaristia. Celebrar Todos os Santos significa percorrer a estrada da santidade que é possível não só a algumas ilustres figuras do passado e do presente mas a todos os que pelo Batismo se tornam filhos de Deus.

Por isso, esta celebração procura vincar como a santidade não é demodée, mas um desafio permanente lançado a cada crente. A credibilidade da Igreja, hoje em dia, passa forçosamente pela seriedade com que cada um de nós, batizados, acolhe a proposta cristã. Diz S. Paulo: «Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto» (Col 3,1). Eis o que significa procurar a santidade: aspirar às coisas do alto, mesmo na realização das coisas terrenas. Efectivamente, «Deus nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na Sua presença» (Ef 1,4). O Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática Lumen Gentium, veiculou esta «vocação universal à santidade». Mas o que é isso de ser santo?

No Evangelho, Jesus é definido como «o Santo de Deus», e várias vezes pela boca de endemoninhados (veja-se o caso de Mc 1,25). Nos Actos dos Apóstolos, santos são os cristãos perseguidos em Jerusalém (Act 9,13), ou seja, os que percorrem a via de Jesus. Nesta linha de continuidade, percebemos que ser santo mais não é do que trilhar o caminho de Jesus. Não se trata de uma 'encarnação' do Mestre, mas de uma 'imitação' (como Paulo apologeticamente o fazia em tom auto-elogioso da sua pessoa). Ser santo não significa, por isso, viver acima do mundo, numa terra de ficção ou imaginação (isso seria contrariar a lógica da encarnação), mas acolher, discernir e viver em cada momento os sentimentos do próprio Deus que contemplamos em Jesus. No fundo, ser santo implica a 'renovação' permanente do estado de graça em que Deus nos criou, como Sua imagem e semelhança (Gn 1,26). Não se trata, por isso, de um status especial ou de uma realidade extraordinária, mas de uma característica inata e ordinária que carece apenas de uma consciência mais vincada e cuidada da sacralidade do que somos. Porque é possível, como diz S. Paulo, já não sermos nós a viver, mas Cristo a viver em nós (Gal 2,20); porque é possível, como diz Jesus, «ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5,48); porque é possível, pelos sacramentos da Igreja, a santificação contínua de cada fiel e a comunhão plena com Deus; porque o Senhor torna possível que, mediante a acção do Seu Espírito, nos tornemos «templo santo de Deus» (1 Cor 3,16). A santidade não é uma utopia, mas uma possibilidade para quem procura e uma realidade para quem deseja. Se Deus caminha na história através dos passos dos santos, que para muitos é o único Evangelho lido e acolhido pelos nossos contemporâneos, não enjeitemos este dom de transformarmos os nossos passos em pegadas de Deus na história humana, que para o crente será sempre uma «história santa».