quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A «Irmã Morte» - entre o enigma e a certeza



Por muito que neguemos, apelando à fé cristã que dizemos possuír, a morte afigura-se-nos sempre com uma inevitável carga dramática, entre a ambiguidade ou a irreversibilidade. De facto, acreditar que Cristo ressuscitou e que nós com Ele e n'Ele ressuscitaremos torna-se apaziguador, mas nem por isso anula aquilo que é insegurança diante de um «desconhecido» que inevitavelmente todos teremos de conhecer. 
Ingenuamente, achamos que a realidade da morte sempre foi pacífica e entendida linearmente na Escritura Sagrada. Mas não é assim. No Antigo Testamento a ideia de uma vida depois da morte está pouco presente: a vida do povo de Israel foca-se fundamentalmente 'nesta vida' e no modo como a vivemos. Gn 25,8 recorda que Abraão morre «velho e saciado de dias», aceitando serenamente a morte após uma vida longa e feliz. Mesmo quando lemos que o justo, depois da morte, se junta aos seus pais (Gn 48,29), apenas se quer afirmar que será sepultado no mesmo local em que jazem os seus familiares. Efectivamente, na concepção israelita clássica a morte é o lugar da «não vida» (Sal 115,17-18), um regresso à terra da qual fomos tirados (Sal 90,3), onde ninguém pode louvar a Deus.
Também alguns textos, se não bem enquadrados historica e teologicamente, podem ser precipitadamente classificados como ilustrativos de uma vida depois da morte, anunciada ou já vivida. É o caso de  Ez 37, no famoso capítulo dedicado à revivificação dos ossos ressequidos. Porém, estas leituras, lidas em chave alegórica, pretendem situar o regresso do exílio como uma verdadeira 'ressurreição', uma passagem de uma realidade de trevas a uma realidade de luz. Os sepulcros que o Senhor declara abrir para o povo são uma imagem da permanência de Israel em terra estrangeira, na Babilónia, onde aquele pensa ter morrido enquanto povo. Nesta linha vai igualmente Isaías no capítulo 26 (vv.16-19), que categoricamente afirma: «Mas de novo viverão os teus mortos; os meus cadáveres ressurgirão».
A noção de imortalidade (da alma) começa a surgir apenas em textos mais tardios, por volta do século IV a.C., primeiro em literatura extra-bíblica e depois materializada nos textos ditos sapienciais. Claro que a noção de uma vida depois da morte, em que as almas dos bons são separadas das dos maus, encontra resistência nalguns livros inspirados. Qohelet propõe uma visão absolutamente negativa da vida depois da morte («tudo é ilusão», diz repetidamente, e «tudo é igual para todos: para o justo e para o malvado...»); Job mete em crise a doutrina da retribuição, pois vê-se confrontado, em 1ª pessoa, pela injustiça de um justo que sofre; Ben Sirá permanece ainda nesta visão de que a morte é o fim de tudo, ainda que sem a radicalidade de Qohelet: o que interessa é o usufruto pleno desta vida, pois quem não sabe saborear os bens penúltimos que Deus dá, não será capaz de saborear os bens últimos (Sir 14,12-19).
No entanto, subjaz sempre a ideia de que mesmo não sendo um conteúdo demasiado evidente, acredita-se que Deus é o Senhor da vida, e como tal deve sê-lo também no momento da morte, mesmo que a forma como isso se processa não seja visível. Só no 2º Livro dos Macabeus essa realidade se torna mais visível. Em tempo de perseguição (e martírio), a questão da justiça de Deus ganha novos contornos: se Deus é justo, é necessário que possa retribuir os seus fiéis também e sobretudo após a morte. É neste contexto da crise macabaica, nos finais do século II a.C., que começa a surgir de forma mais estruturada e incisiva a possibilidade de uma imortalidade que enquadre uma ressurreição dos corpos, aspecto que o livro da Sabedoria (século I) irá reforçar, como tão bem escutamos nas leituras dos funerais: «A vida dos justos está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá» (Sab 3,1ss).
Jesus situa-se nesta linha. Para Jesus, enquanto totalmente humano, a morte é uma realidade dramática. Ele chora pela morte de Lázaro e vive a agonia diante da eminência da morte. Mas na Sua ressurreição de entre os mortos, mostra-nos que o Deus da vida e do amor não pode permitir que a morte tenha a última palavra. Em Jesus e no Seu mistério pascal, o enigma da morte torna-se certeza, porque triunfo de Jesus. As Suas palavras tornam-se conforto e abrem-nos também o horizonte da vida: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá para sempre (Jo 6,51), «Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá» (Jo 11,25). Paulo insiste: «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé, ainda estamos nos nossos pecados» (1Cor 15,14). E nós apoiamo-nos, ainda, na promessa que da boca de Jesus vem: «Hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc 23,43).

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