domingo, 10 de fevereiro de 2019

A vocação e o discipulado à luz do Evangelho deste Domingo V do Tempo Comum


A vocação é algo misterioso. Apresenta-se sempre como uma realidade inesperada, inaudita, não controlável, como um golpe de amor do próprio Deus, que sublima a natural debilidade humana para a transformar em vontade de servir. Foi assim com Isaías, que sentia a sua indignidade de «homem de lábios impuros», e com Paulo, que se considera indigno de ser chamado apóstolo «por ter perseguido a Igreja de Deus».
Mas se é verdade que na eleição Deus não se deixa condicionar pelas fraquezas humanas, a resposta do chamado deve corresponder à humildade exigida: ser profeta ou ser discípulo só é possível com a graça de Deus. No evangelho que hoje escutamos Lucas traça, em forma de preâmbulo, aquele que se pode definir o perfil do discípulo de hoje, tanto ontem como hoje. Eis alguns dos elementos que podem servir para aferir até que ponto também nós somos verdadeiros discípulos, do qual Pedro é o protótipo:
  • O discípulo é aquele que, mesmo de forma inesperada, oferece o seu espaço para Jesus falar. Não se distancia, não se alheia, mas oferece os seus préstimos, por pequenos que sejam. Sem se dar conta, Jesus pode servir-se de nós para fazer grandes coisas, como o fez com a barca de Pedro para poder falar à multidão;
  • O discípulo é aquele que sabe que apesar de saber muito, é um aprendiz junto de Jesus. Pedro sabia da arte da pesca, mas nem por isso deixa de dar crédito ao desafio de Jesus de lançar as redes para a pesca, apesar da infrutífera tentativa da noite anterior. É na palavra de Jesus que se arrisca e se cumpre a obediência na fé, e assim fazendo descobrimos que a Palavra de Jesus não falha, é credível e traz abundância e frutos inesperados às nossas vidas;
  • Ser discípulo é aprender a trabalhar em equipa, sabendo que sozinho as coisas se tornam mais complicadas, como Pedro demonstra ao pedir ajuda aos seus colegas. Não é por acaso que Jesus constitui um grupo para O acompanhar e nunca convida ou envia discípulos sozinhos, mas sempre em grupo. Quem quiser seguir Jesus tem forçosamente de enquadrar a sua vocação e missão no todo eclesial e acolher os dons que outros podem constituir para nós;
  • Ser discípulo exige humildade e o reconhecimento das debilidades próprias do ser humano, e que por isso sabe pedir perdão e prostrar-se diante do Senhor. No entanto, nunca se deve esquecer que o Homem será grande quando se souber ajoelhar diante do Criador;
  • Ser discípulo é o prefácio de uma vida apostólica. A vocação de discípulo não existe em função de nós próprios, pelo que a partilha do que se ouviu, como diz S. Paulo na epístola, transforma o discípulo em pescador de homens, isto é, alguém capaz de arriscar lançar as redes para resgatar os homens das trevas e trazê-los para a luz que Cristo oferece;
  • Ser discípulo implica renúncia e pôr o coração no essencial. Para Lucas, o discípulo deve «deixar tudo», como fizeram estes primeiros, ou seja, desamarrar-se de tudo aquilo que impede uma liberdade mais autêntica face aos bens e ao que pode impedir um caminho mais autêntico de fé;
  • Por fim, ser discípulo é seguir Jesus para onde quer que Ele vá, aceitando as consequências que isso traz. No fundo, é estar disponível para ser mártir, sobretudo nos contextos em que possa existir uma certa oposição à Igreja.



sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

«As novas bem-aventuranças da família»


No passado domingo da Sagrada Família, na minha homilia comentei as «novas bem-aventuranças da família», título original do último capítulo do livro «O tesouro escondido» da autoria de José Tolentino Mendonça. A pedido de várias pessoas, partilho neste blog as ditas bem-aventuranças com uma interpretação minha do que eu entendo sobre cada uma delas.

  1. «Bem-aventuradas as famílias que entendem a sua missão como uma arte da hospitalidade». Aqui não está apenas em causa a disponibilidade para abrir a porta da nossa casa a quem nela bate, ou até cumprir a obra de misericórdia: «Dar pousada ao peregrino». A arte da hospitalidade deve verificar-se de forma especial na capacidade de acolher o outro(a) que me é mais próximo, ou seja, os membros da família, através de uma receita baseada na tolerância, na reciprocidade, no princípio da comunhão e na consciência da missão e papel específicos de cada um enquanto esposa ou marido, pai ou mãe, filhos, etc. Conhecer os dons do outro e potenciá-los devem constituir desafios permanentes para o crescimento mútuo.
  2. «Bem-aventuradas as famílias que diariamente combatem o analfabetismo dos afetos». A família deve definir-se como uma artesã de uma sã orientação da afetividade, uma fábrica de ternura, não através de reproduções mecânicas de gestos, mas por uma experiência afetiva e efetiva da linguagem do amor, do abraço, do beijo, das palavras ditas que manifestam sentimentos em relação ao outro. Sentimento e sensibilidade devem andar de mãos dadas.
  3. «Bem-aventuradas as famílias que compreendem a importância do inútil». É no seio familiar que se deve consolidar a fuga ao utilitarismo, e prevalecer a procura da gratuidade e do dom. Como de pode ler no clássico "O Principezinho", «foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante para ti». Na família deve-se perceber que a simples presença é o melhor remédio para engrandecer os corações, mesmo que carregada de aparente inutilidade (basta pensar numa visita a alguém doente ou idoso que já não nos reconhece, mas que não deixa de constituir um sinal de entrega e gratuidade a presença aparentemente inútil de quem faz do silêncio as suas palavras caladas). 
  4. «Bem-aventuradas as famílias que cultivam uma arte da lentidão». Como diz o povo, e muito bem, "a pressa é inimiga da perfeição". Uma família no verdadeiro sentido da palavra não pode ser escrava do tempo, não pode cair na tentação de também nesse regaço de vida se deixar submeter à tentação da vertigem, de olhar constantemente para o relógio. Num mundo que nos asfixia de atividades e solicitações, há que privilegiar a qualidade do tempo que se tem, e não tanto a quantidade. Amar as pessoas significa ter tempo para elas, escutá-las, olhá-las e fazê-las sentir acolhidas; essa há-de ser a meta na relação familiar.
  5. «Bem-aventuradas as famílias que não deitam fora a caixa dos brinquedos». Claro que por detrás desta bem-aventurança não está apenas a consciência de que os pais serão, um dia, avós, ou que os pais terão a graça de vir a ter mais filhos. A caixa dos brinquedos simboliza metaforicamente o baú das memórias que perpetuam uma história, que nos dá uma identidade única e singular e que nos permite perceber como Deus nos tem acompanhado ao longo da vida, fazendo de nós pessoas agradecidas e que aí encontram um bálsamo para superar dificuldades. A fuga à artificialidade das relações e a nostalgia da felicidade de criança devem fazer da vida de cada um uma verdadeira caixa de brinquedos, onde, como Nossa Senhora, se guardam todos os acontecimentos no coração.
  6. «Bem-aventuradas as famílias que arriscam fazer um bom uso das crises». Os obstáculos que qualquer família vive não podem ser vistas como um drama, mas como uma chance de amadurecimento. Como um dia me disse um amigo meu, «o que não nos mata fortalece-nos». Cada prova deve ser vista como um desafio que nos conduz ao doce sabor da conquista. As crises fazem emergir o que de melhor transporta o coração humano: o exercício da tolerância, da misericórdia e do perdão. Como diz o slogan, «Família unida jamais será vencida».
  7. «Bem-aventuradas as famílias que dizem de si mesmas: "somos um laboratório para a alegria"». Não se trata aqui apenas e tão só de educar para o bom humor, apesar da sua pertinência. O lar deverá funcionar como uma verdadeira escola do sorriso, um atelier para a esperança, um útero de boa educação e respeito. A alegria cristã manifesta-se pela certeza de se saber amado por Deus e por isso vê no irmão um rosto do próprio Senhor, a quem não se deve negar um gesto, uma palavra ou um sorriso. E a família é esse tubo de ensaio que faz experiência da verdadeira alegria acolhida e transmitida.
  8. «Bem-aventuradas as famílias que vivem no aberto de Deus e do mundo». São necessárias famílias que não se fechem em si mesmas, mas que se tornem elas mesmas 'famílias missionárias'. Como tão bem tem salientado o Papa Francisco, a família é o grande agente evangelizador, o espelho mais fiel do Amor trinitário e no qual Deus se quer rever de forma mais autêntica. 
Saiba cada família ser generosa no acolhimento e criativa e audaz no testemunho destas bem-aventuranças sempre antigas e sempre novas.