segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A morte e a escatologia no Antigo Testamento: da resignação à ressurreição

 

(Figura: Vale dos ossos revivificados da profecia de Ezequiel)


Hoje celebramos a comemoração dos fiéis defuntos, dia em que de forma mais visível fazemos memória daqueles que cumpriram a sua peregrinação terrena e já partiram para a morada eterna dos Céus. Nem sempre sabemos lidar com a morte, mesmo que nos digamos crentes: por vezes vivemos uma resignação sem esperança, um drama sem fé, uma cruz sem ressurreição, uma sexta-feira santa sem Páscoa. Nós, cristãos, acreditamos na ressurreição de Cristo, e é à luz pascal que hoje olhamos a realidade da morte como passagem (Páscoa), sabendo que "se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Por isso, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor" (Rm 14,8). Mas terá sido sempre assim? Qual a teologia do Antigo Testamento sobre a morte e sobre a escatologia (realidades últimas da vida)? Neste pequeno ensaio apresentarei, de forma panorâmica, a evolução geral do entendimento veterotestamentário acerca da escatologia do Antigo Testamento.


1. A Morte aceite como uma realidade natural

Na maior parte dos livros do Antigo Testamento, a ideia de uma vida depois da morte é uma realidade pouco presente: a preocupação do povo de Deus parece centrada nesta vida e na forma como a vivemos, hic et nunc. A morte é serenamente aceite, e a longa vida considerada uma bênção. Assim se aborda o tema da morte nas tradições patriarcais do livro do Génesis, onde se diz que os Patriarcas (Abraão, Isaac e Jacob) morrem felizes, idosos e saciados de bens (Gn 25,8, por exemplo, para o caso do primeiro). Não se vislumbram nestas narrativas do termo da vida dos Patriarcas qualquer referência a uma vida depois da morte. O mesmo sucede com algumas das figuras proeminentes da tradição bíblica, como Moisés, Gedeão, Tobias ou Job, entre outros. Também quando se lê que depois da morte se reunirão com seus pais (como por exemplo em Gn 48,21), isto não diz respeito a um determinado lugar post-mortem, mas à partilha do mesmo túmulo de família que os seus antepassados. Deste modo, o homem bíblico aceita a morte sem grande dramaticidade e como parte da experiência vital do ser humano (exceptuando, talvez, a morte precoce e inesperada, antes do tempo normal, que é entendida como punição divina). 

A concepção israelita clássica afirma que todos os seres humanos, depois da morte, ingressam no she'ol, um lugar comparado aos infernos que se encontra numa vasta região subterrânea e que se caracteriza pela ausência de vida. Esta é uma visão muito cantada nos salmos, como se depreende deste exemplo de Sl 115,17-18: "os mortos já não louvam a Deus, nem os que descem ao lugar do Silêncio. Mas nós, os vivos, bendizemos o Senhor, desde agora e para sempre!". Is 38,18 mete igualmente na boca de Ezequias uma oração que apresenta esta concepção: "não são os infernos a louvar-Te, nem a morte que Te glorifica, pois já não esperam a Tua fidelidade aqueles que descem à cova". A morte é, por isso, uma realidade aceite com resignação e profundo realismo, a meta final do ser vivo: pode ser amargura para quem vive a plenitude de vida, mas uma sentença agradável para quem já esbarra na velhice dos seus dias. Só de modo muito velado e em pouquíssimos textos se intui uma sorte diferente para os bons e para os maus (aspeto que só em alguns livros apócrifos, como Enoch, se tornará mais visível).


2. A escatologia profética: a ressurreição como 'imagem' da restauração do povo de Israel

A experiência do exílio da Babilónia (séc. VI a.C.) foi vivida com um grande sentido de dramaticidade e tragicidade. A noção de distância face à sua terra e face ao Templo, lugar da habitação de Deus, fez com que começassem a emergir interrogações sobre o fim último, não tanto de cada pessoa em particular, mas do povo enquanto tal, como realidade coletiva. Até ao século VI/V a.C., a perceção de uma vida para lá da morte permanece aquela que sinteticamente descrevi no item anterior. O exílio traz novas questões, não tanto relativamente ao horizonte futuro e escatológico, mas relativamente a esta história concreta, vista pelos profetas como carregada de opressões, injustiças e guerras. O primeiro a trazer para a reflexão estas questões foi o profeta Oseias, ainda antes do exílio: em Os 6,1-3 surge, pela primeira vez, a ideia de uma restauração do povo de Israel entendida como ressurreição. A 'ressurreição' do povo, neste caso o povo do reino do Norte, onde Oseias exerce o seu ministério, é olhada como uma conversão, um regresso ao Senhor de quem se tinham afastado, e cuja consequência parece ser a invasão da Samaria por parte do exército assírio (que culminará na destruição da Samaria em 721 e a posterior deportação dos israelitas para a Assíria). Contudo, se esta ruína é atribuída a Deus, permanece a esperança (e a certeza) de que será o próprio Senhor a 'levantar' e devolver a vida ao povo sem grande demora (2/3 dias, segundo o profeta). Esta linguagem da ressurreição está intimamente ligada ao conhecimento de Deus e a um estar/caminhar na Sua presença. É uma questão teológica que está em jogo: permitirá Deus que o Seu povo seja destruído? A linguagem esponsal e a metáfora matrimonial dos três primeiros capítulos deste livro mostram como o amor de Deus supera e vence as traições do povo. Segundo Oseias, mesmo diante das dificuldades e infidelidades do povo, Deus sempre o fará reviver e regressar ao Seu seio.

Um século e meio mais tarde ganharia relevo o profeta Ezequiel, que, vivendo já a experiência do exílio da Babilónia, reflete com maior vigor o problema entre o Deus de Israel e o povo que constantemente viola a Sua aliança. O melhor exemplo desta realidade encontra-se no capítulo 37 e a sua visão dos ossos secos que são revivificados graças ao sopro do Espírito. Esta imagem de Ezequiel não se liga tanto a uma ressurreição dos corpos, como o entende a perspetiva cristã, mas à 'ressurreição' da casa de Israel enquanto tal, segundo a própria explicação do profeta (Ez 37,10-14). Os sepulcros que o Senhor abrirá e dos quais fará sair o povo representam a permanência de Israel em terra estrangeira, a Babilónia, onde Israel pensar estar morto enquanto povo. É verdade que esta visão deve ser lida e interpretada no seu sentido metafórico já citado; porém, subjaz uma ideia a não ser descurada: Deus tem a capacidade de dar vida a quem está morto, mesmo que aqui se trate de revivificar um povo inteiro. E fá-lo mediante o sopro do Seu Espírito, em clara analogia com o momento da criação de Gn 2,7.

O terceiro caso paradigmático encontra-se em Isaías, nomeadamente o capítulo 26. Este texto, que segundo alguns autores foi inserido mais tarde na obra (já após o regresso do exílio), continua a linha previamente descrita em Oseias e Ezequiel. Tal como em Ezequiel, o povo proclama não ter mais esperança através de algumas imagens de dor, como o parto, mas o profeta reitera, de forma incisiva, que "os teus mortos voltarão a viver", salientando que ainda há esperança para quem acredita que tudo parece ter terminado. Contudo, acreditamos que possa haver aqui qualquer coisa de novo: a simples afirmação de que "os meus cadáveres ressurgirão" e o convite a que os que jazem no pó da terra se levantem e exultem parecem indicar algo mais do que a simples restauração de Israel. Neste texto, começa a ganhar contornos mais nítidos a possibilidade de uma 'ressurreição' para aqueles que são fiéis a Deus ("os teus mortos"; "os meus cadáveres"); permanece obscura a forma como isso acontecerá.


3. As particularidades da escatologia na literatura sapiencial

A antropologia bíblica não promove o dualismo, antes se apoia numa visão unitária do ser humano, isto é, composto por duas partes inseparáveis: o corpo material e a alma espiritual. Por isso, um israelita não concebe uma vida para lá da morte que não envolva a pessoa inteira, pelo que a haver algo post-mortem, essa realidade deve envolver também a corporeidade: se o corpo morre, poderá ressurgir. Nesta ótica, está completamente afastada a hipótese da crença numa imortalidade da alma, aspeto que vigorou nalguns livros não canónicos.

A literatura sapiencial, por seu turno, não assume como prioridade a reflexão sobre a vida depois da morte. O seu foco está sobretudo na práxis existencial e no sentido 'desta' vida. Alguns autores, como Coélet (ou Eclesiastes), possuem inclusivamente uma visão negativa da vida depois da morte. Basta recordar passagens como  Ecl 3,18-21 ou Ecl 9,2-6. O autor afirma que não há nada depois da morte: o ser humano regressa ao pó de onde veio (3,20), e ninguém nos poderá dizer se existe alguma coisa para além desta vida. Não há princípio de retribuição, porque o destino é igual para todos: para os bons e os maus, para os homens e para os animais. Coélet é de um realismo levado ao extremo: nega a vida depois da morte, mas não postula um simples Carpe Diem. A vida deve ser levada a sério e vivida na procura de aproveitar e saborear os dons que Deus dá. Esta visão será igualmente seguida e desenvolvida por Ben-Sirá (ou Eclesiástico), autor do século II a.C., que permanece ancorado na tradição israelita do she'ol. Ambos parecem negar a escatologia, mas podem ensinar-nos algo: quem não sabe aproveitar os bens penúltimos da vida, jamais poderia saborear os bens últimos.

As grandes novidades vêm de três livros: o de Daniel, o Segundo Livro dos Macabeus e o livro da Sabedoria (estes dois últimos estão escritos apenas em grego, pertencendo ao leque de livros que definimos como deutero-canónicos, ou seja, reconhecidos pela tradição cristã, mas que se mantém fora do cânone hebraico das Escrituras). Os dois primeiros aproximam-se semanticamente na concepção da vida após a morte: a ressurreição (corpórea) é uma possibilidade para os israelitas que morrem na defesa da lei de Deus. A ressurreição apresenta duas características: não se trata de um mero regresso à vida precedente e deve-se ao poder criador (e recriador) de Deus. A crueza com que é descrita a morte dos irmãos no Livro dos Macabeus, e a certeza destes de que inclusivamente os membros corporais despedaçados se reintegrarão na vida futura, mostra a firme convicção da fé na ressurreição dos corpos.

O livro da Sabedoria, provavelmente escrito por volta do século I a.C., constitui, por assim dizer, o vértice da escatologia veterotestamentária, e como que o gancho com o Novo Testamento. Os seus seis primeiros capítulos são um verdadeiro tratado de escatologia, o que constitui uma grande novidade no Antigo Testamento. O autor sagrado relê, de forma inovadora, Gn 1-3 e a finalidade da criação do ser humano. Neste contexto, afirma o sábio que "Deus criou cada ser para que subsista" (Sb 1,14), para a vida, e que as criaturas do mundo são portadoras de salvação. A visão do mundo é totalmente positiva e não apresenta nada de pessimista. A morta não faz parte do projeto de Deus sobre a criação, e por isso "o Hades não reina sobra a terra" (Sb 1,14). O autor vai mais longe ao vincar que Deus criou o ser humano para a/na incorruptibilidade (aftharsía), termo que faz associar à sua condição de imagem da natureza de Deus. A incorruptibilidade faz, por isso, parte do desenho salvífico originário de Deus; o uso deste termo, aliado ao envolvimento de todo o cosmos na salvação do ser humano que a terceira parte do livro postula, faz-nos chegar à conclusão de que o autor estaria a pensar numa ressurreição dos corpos como a realidade escatológica por excelência.

Esta ideia é reforçada pela certeza de que Deus não criou a morte (Sb 1,13), e que esta entrou no mundo pela inveja do diabo (Sb 2,24). Não se trata da morte física, pois essa todos experimentam, mas daquela realidade que nos impossibilita de estar em comunhão com Deus. A morte é, por isso, uma realidade ambígua: não é um mal em si, porque é sobretudo um sinal da criaturalidade do ser humano, mas para os ímpios torna-se ícone de uma morte mais radical, que é a corrupção eterna. A morte apresenta-se, assim, revestida de duas facetas: uma para o justo e outra para o ímpio; para um é passagem para a vida eterna, para o outro é trânsito para a morte eterna.

Estas afirmações sobre o destino final do ser humano é provavelmente a grande novidade deste livro e iluminará a escatologia do Novo Testamento. Elementos como o juízo escatológico (presente em Sb 3,9ss) por parte de Deus, a sorte diferente dos justos e dos ímpios e a ressurreição dos mortos entendida a partir da incorruptibilidade do ser humano criado por Deus serão temas dominantes nos escritos neotestamentários.


Sugestão de leitura: "Morte e vida na Bíblia", de Alain Marchadour, da Coleção "Cadernos Bíblicos" (Difusora Bíblica)





domingo, 1 de novembro de 2020

Ser santo: um desafio sempre atual


 (Grupo escultórico do Sermão da Montanha, Domus Galilaeae)


(Meditação feita na "Liturgia Diária" para o dia de hoje)



Sugestão de leitura: "Alegrai-vos e exultai", Exortação Apostólica sobre o chamamento à santidade no mundo atual (2018)