domingo, 6 de novembro de 2022

D. Daniel Henriques: da eloquência do silêncio à encíclica dos gestos

 


«O Senhor deu, o Senhor tirou. Bendito seja o nome do Senhor» (Jb 1,21). É com estas palavras que Job resiste à tentação de maldizer a Deus pela grave situação em que se encontrava. Talvez tenha sido também uma frase balbuciada por D. Daniel nestes últimos meses da sua vida. E é seguramente uma expressão que encaixa perfeitamente no que sentimos: bendizer o Senhor pelo tanto que nos deu através do ministério pastoral de D. Daniel.

Conheci o D. Daniel como seminarista. Sempre vi nele uma incarnação (quase) perfeita daquele sonho missionário de chegar a todos que o Papa Francisco veiculou na "Evangelii Gaudium" e que D. Manuel Clemente assumiu como programa para esta diocese de Lisboa. Vi nele um irmão, alguém empenhado na construção de uma autêntica fraternidade sacerdotal, que recebi na imposição das mãos aquando da minha ordenação, nas palavras dirigidas na Missa Nova ou até nos simples gestos de cordialidade com que me recebia nas suas paróquias. Vi em D. Daniel (então Padre Daniel) um irmão mais velho, inspirador pelo testemunho, provocador pelo estilo: um padre "de cajado e sandálias", revestido com a estola da misericórdia, de sorriso fácil, embora tímido, com um coração aberto (e sedento) para chegar a todos.

A partir do dia 25 de novembro de 2018, passou a ser também um pai. D. Daniel não se vangloriou por uma aparente "progressão na carreira", porque como ele próprio assume no seu lema episcopal. "todas as minhas fontes estão em Ti". D. Daniel não dizia palavras vazias: tudo falava de Deus, tudo apontava para Jesus. Despojou-se de qualquer tentação de "poder" para o transformar em serviço. O seu ministério apoiou-se no essencial; e nessa essencialidade, aproximou-se deveras da santidade. Não era apenas um homem bom; era um homem santo.

A partir de outubro de 2019, sem deixar de ser pai, passei a ter em D. Daniel um amigo. Estava eu em Roma, no quarto ano da minha aventura romana. D. Daniel já sabia o que tinha, mas, pensando mais nos outros do que em si, preservando mais a amizade do que a comodidade, quis dizer presente no Consistório que faria do seu colega e amigo D. José Tolentino Mendonça Cardeal da Igreja Romana. A doença foi mais forte, e obrigou-o a trocar a Basílica de S. Pedro pela Clínica Gemelli. As notícias não eram animadoras: teria que ser submetido a intervenção cirúrgica.

Foram 3 semanas de graça (e de graças). Não foram apenas 3 semanas, para mim, de visitas quase diárias ao hospital; foram 3 semanas a lidar com um santo. Foi impressionante a forma como D. Daniel lidou com a doença. Em primeiro lugar, com muita serenidade; mas também com um doloroso realismo de quem sabia que um longo calvário o esperava.

No início da sua "estadia", pediu 3 coisas: um terço, o breviário e, se possível, uns chinelos de quarto. A fragilidade física de D. Daniel era sobrenaturalmente contrariada por esta "teimosia" em se agarrar ao Senhor. Nunca ouvi uma queixa. Nunca ouvi uma repreensão. Da sua voz cansada só brotavam palavras de gratidão pelas manifestações de carinho e de comunhão que chegavam de Portugal e às quais não conseguia responder; e pelas visitas, muitas delas inesperadas, com que foi sendo brindado. Creio que naquelas semanas o D. Daniel percebeu o alcance e a verdadeira dimensão do seu ministério episcopal. Mas a sua simplicidade impedia-o de o exprimir publicamente. Ele foi o bispo do essencial e da simplicidade.

Recordo-me de me ter dito que a primeira coisa que fez quando chegou a Roma foi confiar o seu ministério (e a sua doença) à proteção e intercessão de S. João Paulo II, de quem era devoto. E foi precisamente no antigo quarto do Santo Padre que D. Daniel viveu os seus últimos dias na Clínica Gemelli. Mais uma das "deuscidências" que o Senhor possibilitou nestas semanas. Na sua boa disposição, dizia-me que quando saísse iríamos comer massa e um gelado. Era o que lhe apetecia. Mas também o primeiro encontro com o Papa Francisco, já pela segunda vez adiado devido à doença.

Deus foi generoso para com D. Daniel: não se limitou a cumprir estas duas vontades (comeu gelado e massa, e teve a graça de concelebrar com o Santo Padre em Santa Marta), mas permitiu que conhecesse a Biblioteca do Vaticano e outros locais emblemáticos ainda desconhecidos.

Os meses que se seguiram foram um sofrido e doloroso Calvário, vivido em chave pascal. Entre a tensão da oração de Jesus no Getsemani e a liberdade com que Jesus entregou ao Pai o Espírito, D. Daniel experimentou provavelmente todas estas sensações. Mas viveu-as com um profundo sentido de fé e de silêncio, desejando apenas que o seu testamento espiritual fosse uma reprodução fiel do seu padroeiro de curso: «combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé». 

Vi-o pela última vez no dia 5 de outubro. O seu sorriso tentava esconder o que de facto sabia estar a viver. Estava nas mãos de Deus. Aliás, como sempre esteve e como sempre se sentiu. Mesmo sabendo que poderia ser uma possibilidade, nunca imaginei que fosse a última vez que o iria ver. Desde 2019 que sempre me agradecia por aqueles momentos vividos em Roma. E dois dias antes de falecer, numa troca de mensagens, foi essa a última frase: «Obrigado pela amizade». Mas esta é que deveria ser a minha frase: «Obrigado pela amizade». Conheci um santo, um verdadeiro testemunho de Cristo Bom Pastor que fez da eloquência do silêncio e da encíclica dos gestos o seu verdadeiro testamento espiritual.

Obrigado, D. Daniel. Pela amizade. Por tudo. A-Deus!

segunda-feira, 18 de abril de 2022

A Páscoa de Jesus e as «nossas Páscoas»


A conclusão da vida terrena de Jesus suscitou uma série de sentimentos nos discípulos de Jesus: se por um lado se deixaram mergulhar pelo desânimo, pela tristeza e pela desilusão de um caminho não concluído da forma inicialmente idealizada, por outro lado não poderiam ignorar as sementes de ressurreição lançadas ao longo da vida pública de Jesus, nomeadamente no contexto da subida para Jerusalém. Pairava no ar a expetativa de um "volte-face" que pudesse cumprir as Escrituras que na altura ainda não tinham compreendido plenamente.

É nestas circunstâncias existenciais que os discípulos tentam interpretar a morte de Jesus e confirmar a veracidade das Suas "profecias". Mas nesta indagação interior, os discípulos de Jesus descobrem que a ressurreição anunciada pelo Mestre não se referia apenas à Sua exaltação pascal (a Páscoa de Jesus), mas também à própria «elevação» espiritual requerida a quem segue Jesus (a Páscoa dos discípulos... a nossa Páscoa): «se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto» (Cl 3,1). Jesus não é o único a ter que «sair vitorioso do túmulo», como se canta no Precónio Pascal. Também nós temos que derrubar os nossos próprias obstáculos e sair dos nossos próprios túmulos. O evangelho deste domingo de Páscoa, do evangelista João, apresenta três das personagens mais emblemáticas neste contexto pascal e qui aqui personificam, a seu modo, três patologias de corações carecidos de uma intervenção cirúrgica por parte do Médico Celeste. E é precisamente na ida ao hospital do Gólgota que se veem curados e (re)iniciam a aventura de um caminho que julgavam concluído.

Em primeiro lugar, somos confrontados com a escuridão de Maria Madalena. Aquela que viria a ser a "primeira apóstola" da ressurreição (a apóstola dos apóstolos) vai ao sepulcro «de manhãzinha, ainda escuro». Não era só o dia que estava escuro, também o seu coração permanecia escuro e ferido, talvez por não ter ainda aceitado completamente a sua história e não se conformar com um passado do qual não se orgulha, mas que havia sido exorcizado na misericórdia de Jesus. Madalena permanece à distância: vê a pedra retirada do sepulcro mas não tem coragem de se aproximar e, mais ainda, de nele entrar. Naquele momento, ainda não tinha percebido que para se ressuscitar é preciso entrar nos nossos túmulos, nos aspetos de morte que ainda nos invadem e dos quais não nos conseguimos libertar. Ressuscitar com Cristo é permitir que Ele nos liberte, pelo dom da misericórdia e do perdão, das feridas e demónios que ainda nos atormentam. E se isso não for suficiente, há sempre um Pedro e um João que nos podem ajudar a realizar esse percurso purgante da nossa própria existência.   

Em segundo lugar, emerge a figura do discípulo predileto de Jesus, João. A sua jovialidade e voluntarismo levam-no a correr imediatamente ao sepulcro, mas o medo do vazio obrigam-nos a abrandar o andamento. O discípulo amado representa todos aqueles que têm medo do vazio e se amedrontam diante do desconhecido. É o efeito de quem tem um coração sobrelotado e não sabe reorganizar os seus espaços e compartimentos. O horror ao vazio, traduzido numa fuga ao silêncio e à quietude, conduz invariavelmente ao excessivo preenchimento da vida e do coração com coisas aparentemente boas, mas não essenciais. Essas "coisas" permanecem como pedras de tropeço e barreiras sólidas que obstaculizam o esvaziamento de si, condição sine qua non para o preenchimento vital do coração com o sopro divino. Priorizar o vazio onde a Palavra de Deus se faz ouvir e a experiência do Ressuscitado se faz sentir deve constituir um desafio pascal e existencial perene para nos afeiçoarmos às coisas do Alto e não às da terra.

Em terceiro lugar, salienta-se a lentidão de Pedro, que não se explica meramente por uma questão de idade face a João. O princípe dos apóstolos sinaliza aqui o coração acomodado, ou seja, representa aqueles que se resignam a um cultivo do bem-estar e do comodismo, e que por isso rejeitam avançar mais solida e velozmente no caminho por Deus proposto. Há momentos da vida em que é preciso acelerar e andar ao ritmo da vontade divina, sair da inércia em que nos instalamos, e rejeitar o auto-anestesiamento que impede de chegar mais velozmente à santidade desejada. Temos que aprender a andar ao ritmo de Deus e não ao nosso próprio ritmo, e assim vencer as resistências pessoais que ainda condicionam a entrada plena na vida pascal que Cristo oferece. Pedro venceu a auto-justificação cómodo da sua indignidade e pecado (as suas negações) e enfrentou com coragem o sepulcro. Só entrando e vendo é que se pode acreditar. É também este processo dinâmico que hoje, com Madalena, João e Pedro, somos chamados a fazer: a entrar, a ver e a acreditar, fazendo da Páscoa de Jesus a nossa própria Páscoa.

domingo, 17 de abril de 2022

Os três "amores": homilia de Quinta-feira Santa


«Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim». É com esta expressão que S. João abre solenemente este evangelho do lava-pés, anunciando o conteúdo da Hora da entrega de Jesus por amor de nós em Sexta-Feira Santa e sacramentalmente antecipado na última ceia de Quinta-Feira Santa.

Este amor até ao fim é a nota dominante do mandamento novo do amor que hoje celebramos. Nesta indicação pouco ingénua de João percebemos que o mandamento novo instituído por Jesus não é uma realidade parcial nem uma atividade em part-time. Amar não é um sentimento nem uma emoção, é antes uma opção e um compromisso. Amar até ao fim é aderir ao projeto de Deus de forma incondicionada e incondicional. Hoje, nesta celebração, somos chamados a amar até ao fim três realidades ou lugares onde o Senhor se faz presente.

1. Amor à Eucaristia
A Eucaristia não foi instituída para consumir, mas para nos consumar, plenificar. Amar a Eucaristia não se traduz numa mera ida à missa nem se restringe a um cumprir um preceito. Amar a Eucaristia significa “eucaristizar” a nossa existência: levar a vida para a Eucaristia e a Eucaristia para a vida. Os primeiros cristãos diziam, a propósito da Eucaristia, «sem Domingo não podemos viver». Hoje, já em Portugal existem dezenas de comunidades sem eucaristia dominical. E isso não nos deve deixar indiferentes, pelo menos no modo como devemos e podemos revalorizar sempre mais este sacramento (seja na sua frequência e participação, seja na formação e no serviço). Amar a Eucaristia permite adorar a Deus e contemplar a vida com olhar divino, deixando-me embalar pelos desafios que daí emergem. Na eucaristia alimentamos uma relação de amor, por isso o relógio deve parar, o mundo exterior deve ficar em suspenso; devemos desejar prolongar esse tempo de amor gratuito, sem pressas e sem a tentação de procurar uma “Missa light”, o mesmo é dizer “quanto mais curta e rápida, melhor”. Amar a Eucaristia é prolongar na adoração eucarística e nas visitas ao sacrário esta relação de amor com o Senhor que sempre me espera.

2. Amor ao sacerdócio (ministerial)
Sacerdócio e Eucaristia têm a mesma origem sacramental nas palavras de Jesus: «Fazei isto em memória de Mim». Não há amor a Cristo e à Eucaristia sem amor ao sacerdócio, que torna sacramentalmente presente o legado ministerial do Bom Pastor. Amar o sacerdote até ao fim não é só querer-lhes bem, e muito menos querer que façam o que quero e idealizo; nem basta rezar por eles e entregá-los ao coração do Pai. Amar os sacerdotes é colaborar com eles, estar disponíveis para ser a sua família. Se o sacerdote deve tornar visível o estilo de Deus (proximidade, ternura e compaixão), o mesmo se deve aplicar aos sentimentos de todos para com o sacerdote, vendo nele um pai e pastor e não só um funcionário do sagrado. Amar o sacerdote implica amar os seus defeitos, sem com eles pactuar. Isso exige iniciativa para o ajudar a superá-los e a deles se libertar: exigir, sem forçar; compreender, sem condenar; corrigir, sem julgar; dialogar, sem murmurar. O sacerdote é, nas palavras do Cura d’Ars, o “amor do coração de Jesus” pelo qual nos chegam a Palavra e os sacramentos, e isso bastaria para os amarmos, até com os seus defeitos.

3. Amor à humanidade
O lava-pés traduz uma máxima veiculada em Mt 25: «o que fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes». A maior prova de amor de Deus pela humanidade foi a Sua solidariedade com a natureza humana; em linguagem teológica, a Sua condescendência. O hino de S. Paulo aos Filipenses traduz isso mesmo: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da Sua igualdade com Deus (...). Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens» (Fil 2,6ss). Esta é a lição do lava-pés: não devemos olhar e amar a humanidade a partir de cima (sobranceria), mas a partir de baixo (humildade). Lavar os pés significa tocar o que de mais débil tem o ser humano: as suas feridas, os seus cansaços, as suas fadigas e dores. Lavar os pés é cuidar daquilo que carece de maior atenção, mas sobre o qual recai o peso da existência; é cuidar dos mais pobres, mas também das dimensões mais recônditas do nosso coração que anseiam por ser regeneradas e purificadas na misericórdia de Deus. Lavar os pés significa preparar os outros e preparamo-nos a nós próprios para o Caminho, para a grande peregrinação da vida, no qual somos companheiros e irmãos.


Três presenças diferentes, mas todas presenças reais de Cristo. Três amores que o nosso coração deve acolher. Peçamos ao Senhor, nesta noite, a graça de O amarmos na Eucaristia, no sacerdócio e na humanidade.