domingo, 17 de abril de 2022

Os três "amores": homilia de Quinta-feira Santa


«Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim». É com esta expressão que S. João abre solenemente este evangelho do lava-pés, anunciando o conteúdo da Hora da entrega de Jesus por amor de nós em Sexta-Feira Santa e sacramentalmente antecipado na última ceia de Quinta-Feira Santa.

Este amor até ao fim é a nota dominante do mandamento novo do amor que hoje celebramos. Nesta indicação pouco ingénua de João percebemos que o mandamento novo instituído por Jesus não é uma realidade parcial nem uma atividade em part-time. Amar não é um sentimento nem uma emoção, é antes uma opção e um compromisso. Amar até ao fim é aderir ao projeto de Deus de forma incondicionada e incondicional. Hoje, nesta celebração, somos chamados a amar até ao fim três realidades ou lugares onde o Senhor se faz presente.

1. Amor à Eucaristia
A Eucaristia não foi instituída para consumir, mas para nos consumar, plenificar. Amar a Eucaristia não se traduz numa mera ida à missa nem se restringe a um cumprir um preceito. Amar a Eucaristia significa “eucaristizar” a nossa existência: levar a vida para a Eucaristia e a Eucaristia para a vida. Os primeiros cristãos diziam, a propósito da Eucaristia, «sem Domingo não podemos viver». Hoje, já em Portugal existem dezenas de comunidades sem eucaristia dominical. E isso não nos deve deixar indiferentes, pelo menos no modo como devemos e podemos revalorizar sempre mais este sacramento (seja na sua frequência e participação, seja na formação e no serviço). Amar a Eucaristia permite adorar a Deus e contemplar a vida com olhar divino, deixando-me embalar pelos desafios que daí emergem. Na eucaristia alimentamos uma relação de amor, por isso o relógio deve parar, o mundo exterior deve ficar em suspenso; devemos desejar prolongar esse tempo de amor gratuito, sem pressas e sem a tentação de procurar uma “Missa light”, o mesmo é dizer “quanto mais curta e rápida, melhor”. Amar a Eucaristia é prolongar na adoração eucarística e nas visitas ao sacrário esta relação de amor com o Senhor que sempre me espera.

2. Amor ao sacerdócio (ministerial)
Sacerdócio e Eucaristia têm a mesma origem sacramental nas palavras de Jesus: «Fazei isto em memória de Mim». Não há amor a Cristo e à Eucaristia sem amor ao sacerdócio, que torna sacramentalmente presente o legado ministerial do Bom Pastor. Amar o sacerdote até ao fim não é só querer-lhes bem, e muito menos querer que façam o que quero e idealizo; nem basta rezar por eles e entregá-los ao coração do Pai. Amar os sacerdotes é colaborar com eles, estar disponíveis para ser a sua família. Se o sacerdote deve tornar visível o estilo de Deus (proximidade, ternura e compaixão), o mesmo se deve aplicar aos sentimentos de todos para com o sacerdote, vendo nele um pai e pastor e não só um funcionário do sagrado. Amar o sacerdote implica amar os seus defeitos, sem com eles pactuar. Isso exige iniciativa para o ajudar a superá-los e a deles se libertar: exigir, sem forçar; compreender, sem condenar; corrigir, sem julgar; dialogar, sem murmurar. O sacerdote é, nas palavras do Cura d’Ars, o “amor do coração de Jesus” pelo qual nos chegam a Palavra e os sacramentos, e isso bastaria para os amarmos, até com os seus defeitos.

3. Amor à humanidade
O lava-pés traduz uma máxima veiculada em Mt 25: «o que fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes». A maior prova de amor de Deus pela humanidade foi a Sua solidariedade com a natureza humana; em linguagem teológica, a Sua condescendência. O hino de S. Paulo aos Filipenses traduz isso mesmo: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da Sua igualdade com Deus (...). Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens» (Fil 2,6ss). Esta é a lição do lava-pés: não devemos olhar e amar a humanidade a partir de cima (sobranceria), mas a partir de baixo (humildade). Lavar os pés significa tocar o que de mais débil tem o ser humano: as suas feridas, os seus cansaços, as suas fadigas e dores. Lavar os pés é cuidar daquilo que carece de maior atenção, mas sobre o qual recai o peso da existência; é cuidar dos mais pobres, mas também das dimensões mais recônditas do nosso coração que anseiam por ser regeneradas e purificadas na misericórdia de Deus. Lavar os pés significa preparar os outros e preparamo-nos a nós próprios para o Caminho, para a grande peregrinação da vida, no qual somos companheiros e irmãos.


Três presenças diferentes, mas todas presenças reais de Cristo. Três amores que o nosso coração deve acolher. Peçamos ao Senhor, nesta noite, a graça de O amarmos na Eucaristia, no sacerdócio e na humanidade.



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