domingo, 20 de maio de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo de Pentecostes (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)


O Domingo de Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa, assinala a conclusão do Tempo Pascal. Efetivamente, a missão de Jesus termina apenas com o envio do Espírito Santo e a continuidade histórica do mistério da Incarnação pela Igreja. É isto mesmo que se celebra no dia de hoje: a presença do Ressuscitado na história através do Seu Espírito e da acção da Igreja, garantes da eficácia da obra de Cristo na contemporaneidade de todos os tempos e lugares. Para muitos teólogos, a manifestação do Espírito Santo no dia de Pentecostes assinala o verdadeiro início da Igreja, realidade que nasce da Páscoa do Senhor e que encontra no Seu Espírito o motor do dinamismo missionário eclesial. Mas o que importa verdadeiramente salientar, e as leituras de hoje testemunham isso, é a mudança de paradigma relacional que se estabelece: do «Deus connosco» (o Verbo de Deus feito Carne) ao «Deus em nós» (o Espírito Santo em nós derramado), rumo à cristificação interior do nosso ser que S. Paulo tão bem testemunha («já não sou que vivo, é Cristo que vive em mim»).
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O Espírito Santo surge como promessa nos discursos de Jesus, sobretudo no evangelho de João, e como realidade no livro dos Atos (também designado como o Evangelho do Espírito Santo). Desde cedo que a Igreja percebeu que era movida por uma realidade sobrenatural que a superava, mas pela qual se deixava conduzir; era a presença do Ressuscitado, manifestação invisível mas que se tornava visível nas obras que confirmavam tal ação divina. E porque só os olhos da fé conseguem captar tal realidade, os autores sagrados sempre tiveram alguma dificuldade em descrever o modo como essa manifestação divina se efetua. Lucas ousa fazê-lo nos Atos através da descrição de um evento extraordinário vivido pelos Apóstolos, com o recurso a imagens e categorias conhecidas das teofanias do Antigo Testamento. Vento e línguas de fogo são elementos veterotestamentários aplicados ao Espírito: o espírito (ou vento, visto que a palavra hebarica ruah pode ter ambos os significados) que pairava sobre as águas aquando da criação, e as línguas de fogo que, segundo uma tradição judaica acerca do Sinai, representam a palavra de Deus comunicada à humanidade até então conhecida (que naquele tempo seriam 70 povos) e que pela sua materialidade se tornam inteligíveis. Os efeitos que estas línguas de fogo provocam nos Apóstolos confirmam esta teoria, já que surgem a falar várias línguas e a fazer-se perceber mesmo aos de terras mais longínquas (seriam, provavelmente, judeus da diáspora). O Pentecostes é, por isso, a celebração da universalidade da Igreja, da sua intrínseca natureza católica e inclusiva, que não conhece qualquer tipo de barreiras e fronteiras. O particularismo judaico é esbatido e o mundo assiste a uma verdadeira «nova criação», que a imagem do próprio vento suscita.
Mas mais do que afirmar quem é o Espírito Santo, as leituras pretendem sobretudo veicular quais os efeitos e consequências. São essas notas que se apresentam de forma sintética:

  • O Espírito Santo derruba barreiras linguísticas e étnicas, porque se apoia na linguagem do amor. A possibilidade de falar em várias línguas não tem apenas a ver com uma questão linguística, mas de atitude – aquela de quem se quer fazer compreender e que por isso tenta adequar a sua linguagem e o seu discurso ao destinatário, não impondo mas propondo;
  • O Espírito dinamiza a vida da Igreja suscitando dons e carismas para a edificação do Corpo de Cristo. Paulo ensina-nos, na segunda leitura, a viver a unidade na diversidade, a aceitarmos a diferença e a complementaridade de cada batizado, no sentido da colaboração mútua e objectivo comum. Nesse sentido não há serviços maiores e menores, membros inferiores e superiores, mas papéis diversos no cumprimento da missão eclesial. Deste modo, o Pentecostes assume-se como a resposta de Deus à Torre de Babel, cuja dispersão e confusão lançadas por Deus visavam quebrar a uniformidade como modo de vida; a pluralidade é um bem, quando vivida na unidade e comunhão de quem tolera e respeita o outro (seu irmão);
  • O Espírito Santo cria e recria a humanidade através do perdão. O sopro de Jesus no evangelho de S. João recorda o sopro de Deus sobre Adão – estamos diante de uma humanidade redimida e recriada em Jesus. O Espírito Santo atuante na Igreja, de forma particular nos seus sacramentos, regenera a debilidade das criaturas e restitui, mediante a reconciliação, a condição de «imagem e semelhança de Deus» que o ser humano vê desfigurada sempre que peca. Para que a vida surja é necessário que a morte seja removida, e o Espírito Santo é o único a ter, hoje, a possibilidade de o fazer.