segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O Papa, ministro da misericórdia: uma reflexão sobre o que nos pode unir mas por enquanto ainda separa...


O ministério do Papa é uma questão incontornável e nuclear na concepção católica de Igreja. Mas nem sempre tem sido objecto de um cuidado debate teológico, e em vez de fomentar aquilo para o qual este ministério existe, ou seja, a comunhão da Igreja, acaba por criar cisões e divergências, como vemos na separação entre a Igreja Católica Romana e as Igrejas Ortodoxas e Reformadas. Como explicar esta situação? Que entendimento devemos nós, católicos, ter do Santo Padre?

Podemos ter como ponto de partida uma afirmação contida no Decreto Christus Dominus, do Concílio Vaticano II. Eis o texto:

«Nesta Igreja de Cristo, o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, a quem Cristo mandou que apascentasse as suas ovelhas e os seus cordeiros, está revestido, por instituição divina, de autoridade suprema, plena, imediata e universal, em ordem à cura das almas. Portanto, uma vez que foi enviado como pastor de todos os fiéis, para promover o bem comum da Igreja Universal e o bem de cada uma das Igrejas, tem a supremacia do poder ordinário sobre todas as Igrejas» (CD, 11).

            No parágrafo supracitado encontramos o cerne da questão. Convém frisar que o ministério papal, enquanto realização do ministério de Pedro, não é uma realidade que brota de uma vontade meramente humana, mas faz parte do projecto salvífico de Deus para a humanidade. É um serviço que se fundamenta no próprio querer de Deus, e cujos ecos vislumbramos de modo concreto nas palavras do próprio Jesus.

            Facilmente constatamos como Pedro tem um lugar de destaque no seio dos Doze. Algumas passagens do Novo Testamento, e em particular do Evangelho, parecem colocar Pedro como o primeiro dos Apóstolos: as listas são sempre iniciadas pelo seu nome; em Mt 16, 16-29 vemos Jesus a modificar o nome de Simão para Pedro, incumbindo-o de ser a rocha sob a qual se edificará a Igreja e de ter as chaves do Reino dos Céus que conferem a missão de fazer a ligação entre a terra e o Céu. Já post ressurrectionem, em Jo 21, 15-19, é-lhe pedido por Cristo Ressuscitado que apascente as Suas ovelhas, prolongando o mandato de Lc 22, 31ss de confirmar os seus irmãos na fé, «uma vez convertido». Como vemos através das palavras de Jesus e como deduzimos de outros episódios narrados, sobretudo a prontidão com que Pedro manifesta a fé em Jesus como Messias, antecipando-se ao restante grupo dos Doze (Mt 16, 16), e a menção de ter sido a primeira testemunha da Ressurreição (Lc 24, 34), é fácil perceber a relevância de Pedro no seio do grupo dos Apóstolos e posteriormente na primeira comunidade de Jerusalém.

            Mas ainda ficam questões por resolver: qual a relação entre o primado de Pedro e a primazia da Igreja de Roma na pessoa do seu Bispo? A Tradição da Igreja tem aqui um papel preponderante e de carácter normativo, com uma evolução histórica que acentua este carácter primacial de Pedro e de Roma sobre os restantes Apóstolos e Igrejas, respectivamente. Perante as inúmeras discussões e opiniões acerca desta temática, muitas delas de teor oposicionista à doutrina católica, o Concílio Vaticano I (1870) sublinhou o carácter irredutível deste aspecto doutrinal, com consequências práticas na dogmatização da Infalibilidade do Papa ao nível da fé e dos costumes, enquanto legítimo sucessor de Pedro e “presidente” da Igreja Católica.

            Não há que ter medo de o assumir: o ministério do Papa conserva o ministério do apóstolo Pedro, mesmo que algumas circunstâncias históricas possam ter desfigurado esta realidade. Não se trata de absolutizar o poder pontifício numa dimensão de autoridade monologal e fechada ao restante Colégio Apostólico, mas antes reconhecer na figura do Papa o servus servorum Dei, como tão bem expressou S. Gregório Magno. Ele é o primeiro a testemunhar e a manter a especificidade da Igreja na sua dupla acção: comunhão e missão. Por isso, como nos aponta João Paulo II na sua encíclica Ut unum sint, o Bispo de Roma foi constituído por Deus como «perpétuo e visível fundamento da unidade» (UUS 88). A essência deste ministério reside fundamentalmente neste serviço à unidade da Igreja, a «communio ecclesiarum», pelo que falar do ministério de Pedro implica falar da acção da Igreja. Tudo o que podemos afirmar acerca do múnus papal deriva não dos atributos pessoais do sucessor de Pedro, mas da certeza da assistência do Espírito Santo à Igreja, que permite a continuidade da acção de Jesus na história.

            O lugar atribuído a Pedro está, por isso, fundado sobre as próprias palavras de Cristo, tal como são recordadas nas tradições evangélicas. Ao frisar a necessidade de uma conversão para poder confirmar os irmãos na fé, Jesus põe em evidência a fraqueza humana de Pedro. É por isso que só podemos entender o serviço petrino no horizonte mais amplo da Igreja, que está assente no poder infinito da graça. Deste modo, se o Papa é infalível, isso decorre da própria infalibilidade da Igreja; se o Papa é solícito por todas as Igrejas, essa realidade advém da solicitude da Igreja por todas as Igrejas particulares. O Papa nunca age em nome próprio, mas em prol da execução da missão da Igreja enquanto sacramento universal de salvação. Ainda no número 94 da Ut unum sint se diz que «o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos próprios interesses. Tem o dever de advertir, presumir e, por vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda – em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio Vaticano I – declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé. Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve a unidade.» (UUS 94). O Bispo de Roma é, assim, a expressão visível da plena comunhão da Igreja, enquanto cabeça do Colégio Apostólico com quem forma uma unidade. Assim, em cada uma das Igrejas particulares confiadas aos Bispos realiza-se a Igreja una, santa, católica e apostólica. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro e, desse modo, na unidade de Cristo.

            Por fim, o Papa é o “Vigário de Cristo”, ou seja, é aquele que faz as vezes de Cristo. Mais uma vez, esta é uma realidade que brota do próprio mistério da Igreja enquanto presença da plenitude dos instrumentos de salvação, em que a acção da Igreja é sempre acção de Cristo. O serviço petrino é o serviço de Cristo, consubstanciado na passagem lucana «Eu estou no meio de vós como quem serve» (Lc 22, 27). É igualmente um serviço à misericórdia, que radica na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da sua fraqueza e miséria. Parafraseando, mais uma vez, João Paulo II, «a autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do desígnio misericordioso de Deus e há-de ser vista sempre nesta perspectiva. É que nela se explica o seu poder.» (UUS 92). 

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