domingo, 4 de março de 2018

O meu comentário à Liturgia da Palavra do Domingo III da Quaresma (in «Liturgia Diária», Paulus Editora)

(Purificação do Templo, El Greco)

O Evangelho segundo S. João tem uma estrutura muito particular, não só do ponto de vista teológico mas igualmente na apresentação de uma certa ‘histografia’ de Jesus. Desde o início do ministério público de Jesus até ao Seu mistério pascal, o quarto evangelista narra a presença de Jesus em Jerusalém por três vezes no contexto de celebração da Páscoa. O episódio da purificação do Templo insere-se nessa primeira ida a Jerusalém, mas assume uma configuração diferente da narrativa dos sinópticos: enquanto que nestes o gesto profético de Jesus precipitou o Seu processo de condenação e morte, no evangelho de João está ao serviço de uma teologia dos sinais que caracterizam os primeiros 12 capítulos deste livro. Deste modo Jesus mete em marcha uma ampla reconfiguração da fé do povo judaico e propõe uma renovada interpretação da Lei de Moisés (Decálogo), código da aliança entre Deus e o Povo que a primeira leitura expõe. E projecta para o Seu mistério pascal a chave hermenêutica de toda a Sua vida e pessoa, onde se revela o verdadeiro milagre que os judeus pedem e onde se manifesta a sabedoria que os gregos procuram.
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Aquilo que incomodou os judeus daquele tempo é a mesma realidade que hoje continua a importunar os membros da Igreja, novo Povo de Deus. A palavra de Jesus é incómoda e desafiante, muitas vezes escandalosa e provocadora. Ontem como hoje, na busca de uma vivência mais plena da religião, Jesus deseja purificar a essência do verdadeiro culto, das nossas liturgias e práticas de fé. Ontem como hoje, Jesus desafia a regressar à centralidade de Deus e da pessoa, em detrimento de uma ‘lei’ desencarnada e desprovida do seu verdadeiro espírito.
Efectivamente, «Ele bem sabia o que há no homem». Os escritos veterotestamentários já nos testemunham este olhar profundo de Deus que não se fica pelas aparências, mas olha o coração; Jesus apenas se limita a evidenciar este olhar do Pai que não pode pactuar com a hipocrisia de quem diz acreditar sem verdadeiramente se converter. Aliás, o Decálogo, que hoje nos é dado na primeira leitura a partir da tradição do Êxodo, não é um mero manual de bons costumes ou conduta ética, para ser seguido fiel e cegamente como caminho único e exclusivo de salvação. Os «10 mandamentos», como vulgarmente os conhecemos, são antes de mais um dom de Deus, uma resposta divina à fragilidade do ser humano, uma acção gratuita da misericórdia de um Deus que vê o Seu povo vacilar e que por isso oferece como dom e sob a categoria de ‘lei divina’ as palavras que permitem viver mais plenamente a vocação humana e a aliança com Deus.
Porém, esta obediência à lei deve ser vivida em liberdade, na procura de uma sintonia perfeita entre dois corações: o humano e o divino. No fundo, mais do que vencido, é preciso estar-se convencido da proposta do Senhor, e aderir não só aparente mas realmente. É isso mesmo que Jesus procura evidenciar através do gesto da purificação. Geralmente, o evangelho de S. João deve ser lido como um díptico: a realidade física e a realidade teológico-espiritual, em que esta interpreta aquela. Só assim assume a categoria de sinal que remete para uma dimensão superior ao acto físico enquanto tal. Purificar o Templo significa erradicar o que é nefasto da realidade religiosa mais sagrada do tempo, abalando as estruturas judaicas e a forma como concebiam o culto e exploravam o povo; mas para os destinatários do evangelho, que já assumiram a ressurreição como realidade e presenciaram historicamente a destruição do Templo anunciada por Jesus (ano 70 d.C.), significa igualmente purificar e sacralizar o novo Templo, que é o Corpo de Cristo, a Igreja, nascida do lado aberto de Jesus na Cruz. Deste modo, para os cristãos de hoje, o gesto profético de Jesus deve ecoar aos ouvidos com veemência e como desafio: desafio a uma Igreja não impecável mas arejada, centralizada na gratuidade do louvor de Deus, numa liturgia coerente com a vida, que abre as portas a quem nela quer entrar. No fundo, como tanto tem advertido o Papa Francisco, é necessário que os agentes pastorais não se refugiem nas regras e normas que obstaculizam o olhar da misericórdia sobre a pessoa humana, agindo tantas vezes como controladores da graça e não como facilitadores. É que «a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante» (EG 47).

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